OPINIÃO

A saga do silencioso sentido II

Publicado em 8 de março de 2005

Foi me dando uma tristeza morna. Me subia do fôlego a sensação de faringe quando finge a melancolia em forma de azia. Alguma coisa me perturbava com a mesma inquietude com que a premonição queima por dentro uma bruxa. Algum fim parecia aproximar-se. Fosse que fim fosse, era vasto, perto e mergulhante.

Meu corpo sempre fora sensível aos rios do desejo, e acalmar-me era uma providência a começar pelo lado de fora. Então, estendi-me na cama, na escuridão do quarto, no mormaço do corpo, na harmonia intencionada das mãos acostumadas a mim, aos meus mais sutis segredos e fiz amor comigo. Minhas mãos pareciam me amar muito aquela noite. Dormi, enfim, profundo, antes que o temporal destinado à minha vida caísse.
“ Luzia, Luzia…, adivinha quem chegou?”

Meu sono sumiu para dar lugar à música do caxixi das chaves. Chegou meu São Pedro, meu porteiro generoso abrindo as portas do meu céu. Quis correr ao seu encontro, mas tive medo de tropeçar, cair. Minha casa era cheia de objetos sempre perto de mim no afeto da utilidade, por isso não havia pista de corrida que desse, sem margem de erros, aos braços firmes do meu amor. Raimundo me achou e me abraçou apertado: “hum… essa camisola, em matéria de beleza, só perde para esse tambor de quadril…”

Ri logo.

“Luzia, minha santa, você está ouvindo o canto da Araponga? Vai chover sabia?”

“ Mundo, confessa logo: por que você sumiu? Promete não ir nunca mais pra onde eu não possa alcançar, promete?” “Prometo!” E chorou. Chorou horas e muito no meu colo molhando cambraia e camisolice. Ensopou a fala. Da metade do choro pra lá, ele começou a me beijar miudinho, passava a língua quente e o rosto molhado nas minhas virilhas: acabou alcançando logo com a boca “a flor mais preciosa do jardim mais próximo”, ele mesmo dizia. Nos amamos solenes com uma nobreza de linho. O gozo foi dourado dentro de mim. A noite passou toda dentro do quarto: nós enfiados no dentro de nós mesmos do outro; nada fora do lugar. Tudo dentro do lugar.

Deu-me uma fita cassete de presente e disse pra que eu ouvisse depois no rádio-gravador que ele mesmo me dera Natal passado. “Ah, Mundo, Mundinho querido…, não sabe vir me ver sem me trazer uma lembrança qualquer, são oferendas que, pela quantidade delas, mais parecem pedrinhas com as quais marcara o caminho para não perder a rota desse amor. Eu te amo, Mundo meu.”

Manhã: beijos manteiga, beijos mel, língua mate, barulho de casquinha de pão ou torradas nos molares de Rai. “Ai, isso é uma felicidade! Luzia, você é a mulher mais linda que meus olhos já tocaram. E eu nunca fui tão amado nem serei.”

“ Será sempre sim, amado por mim, meu mago Merlim.” E gargalhamos, gargalhamos… eu me sacudia muito, mas ria quase sem som, ria pra dentro, muito dente, muita dobradura de corpo e nenhum som. Ficava com o rosto vermelho, eu acho, porque ele me dizia: “Luzia cê parece uma bomba, meu amor, solte isso, solte…” e gargalhava ele caindo gostoso em cima de mim. “Te ligo, te proclamo rainha.” Me beijou como um corisco e foi.

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