Anunciam-se novas propostas de reforma constitucional de iniciativa governamental: a autonomia do Banco Central, a reforma sindical e a reforma trabalhista, bem como a continuidade das reformas tributária, do Judiciário e mesmo a previdenciária.
Em prosseguimento às mudanças constitucionais já implementadas, anunciam-se novas propostas de reforma constitucional de iniciativa governamental. A destacar a reforma financeira, sobretudo a respeito da autonomia do Banco Central, a reforma sindical e a reforma trabalhista, bem como a continuidade das reformas tributária, do Judiciário e mesmo a previdenciária. Pela importância que reveste para a experiência democrática no país, cabe destacar a também anunciada reforma política, aliás, com proposta de emenda constitucional atualmente em trâmite no Congresso Nacional, razão dessas notas que em grande parte retomam reflexões já desenvolvidas em textos anteriores.
O calendário eleitoral poderá ser um fator, no curto prazo, de refluxo no processo reformista, em especial com relação a esta ou aquela proposta, a este ou aquele objetivo. Vale lembrar, entretanto, o fato de se tratar exatamente de um processo, com idas e vindas, com momentos de aceleração e de desaceleração, mas correspondendo prioritariamente a uma mesma lógica, independentemente do governo que assuma a direção do processo.
Modernizar a vida política
Não há como ignorar que o pacto de confiança entre governantes e governados encontra-se muito afetado. A baixa confiabilidade das instituições políticas e o relativo descrédito da elite política revelam essa realidade.
O desperdício e o mau uso dos recursos públicos e a corrupção – reiteradamente denunciados e muitas vezes impunes – são talvez o aspecto mais flagrante do tradicionalismo de nossa vida política. Tradicionalismo este próprio de um Estado marcado ainda pelo patrimonialismo e pelo clientelismo com a elite política nem sempre diferenciando o bem público do patrimônio privado – o que demonstra a ausência ainda de uma efetiva cultura republicana.
Um Estado administrado de tal forma tende a perder a noção de serviço público, de políticas públicas em benefício da sociedade, penalizando sobretudo os deserdados que dependem em grande parte dos investimentos sociais do Estado para minorar suas dificuldades.
Impõe-se, assim, com urgência a modernização da vida política, o resgate de uma efetiva cultura republicana, sob pena de se aprofundar ainda mais o divórcio entre o país legal e o país real, entre a “grande política” e o cotidiano dos cidadãos.
De qualquer forma, um verdadeiro progresso em nossa experiência política dependerá menos de reformas constitucionais e legais do que de mudanças nas práticas e comportamentos políticos. Para isto, conta decisivamente uma sociedade e uma opinião pública ativas e participantes.
Reformas constitucionais, em geral
A ninguém é dado desconhecer que a Constituição, como toda norma jurídica, deve continuamente se adaptar, seja através de interpretação, seja através de modificação, às novas circunstâncias e necessidades impostas pelo decurso do tempo e pela evolução da sociedade. Aliás, as próprias Constituições costumam prever mecanismos de sua alteração.
Entretanto, a Constituição, como parâmetro básico de toda ordem jurídica, deve alcançar um mínimo de estabilidade e segurança jurídicas. Na realidade, os problemas maiores com relação à nova Constituição parecem ser, por um lado, sua falta de aplicação ou sua precária aplicação, por outro, sua má aplicação, antes de sua eventual reforma.
A pretexto de uma pretensa crise de governabilidade gerada pela nova Constituição, vem sendo efetivada, já há alguns anos, uma ampla e profunda alteração. Se crise de governabilidade eventualmente existe, trata-se antes de uma crise de insuficiência de democracia: institucionalização ainda precária e limitada do jogo democrático, comprometida em grande parte pela herança do passado. Neste contexto, cabe antes de tudo dar efetividade à Constituição de l988, sobretudo a suas “virtualidades moderni-zantes”, em vez de atingi-la fundamentalmente.
Em grande parte, as reformas constitucionais já implementadas atingem o “núcleo jurídico-político fundamental” da Constituição de 1988. Constituição esta que se inspira nos princípios da democracia social e da democracia participativa, favorecendo ao mesmo tempo um projeto de desenvolvimento nacional, inclusive como forma de viabilizar as conquistas sociais da Constituição. Projeto este que, historicamente, isto é, no contexto de uma industrialização tardia, encontrou – e hoje ainda encontra – no Estado um importante, se não decisivo, articulador. Não se trata de desconhecer ou de condenar o processo de mundialização da economia, mas de saber em que condições nos inseriremos neste processo: se como pólo periférico ou se preservando a autonomia dos centros de poder nacionais em face da emergência das estruturas de poder transnacionais.
Nesse particular, a reforma administrativa somou-se às reformas econômicas no sentido do desmantelamento do Estado, como forma de uma inserção ainda mais subsidiária e dependente do país no processo de mun-dialização da economia.
Reforma política, em particular
A reforma política já foi inaugurada com a desastrosa introdução do instituto da reeleição através da Emenda Constitucional n° 16, de 1997, desastrosa para os costumes políticos e para a experiência democrática. A prevalecerem, nas demais reformas políticas, a inspiração e o espírito da reforma da reeleição, teremos seguramente um aprofundamento da usurpação da soberania popular.
Alguns dos temas em discussão quando se trata de reforma política, nem todos objeto de mudança constitucional, mas de simples alteração na legislação ordinária são os seguintes: fim do segundo turno nas eleições para os executivos federal, estaduais e, nos municípios com mais de 200 mil eleitores, municipais; voto distrital; a denominada “cláusula de barreira” para os partidos; fidelidade partidária; financiamento público das campanhas eleitorais; voto em lista; eventualmente, mudança do sistema de governo.
Questão fundamental diz respeito a uma maior legitimidade da representação, impondo-se respeitar, no possível, uma exata proporcionalidade à população na representação dos Estados na Câmara dos Deputados, até hoje ainda não assegurada. Em outros termos, impõe-se evitar a sobre-representação de alguns Estados e a sub-representação de outros, provocadas pela fixação de um piso mínimo e de um teto máximo no número de representantes (deputados federais) por Estado, adulterando, assim, a vontade popular e beneficiando as forças políticas e sociais mais atrasadas.
Em geral, a discussão tem se dado por tópicos isolados, sem a abrangência que a matéria exigiria. Com isso, perde-se ou dificulta-se em grande parte a percepção da lógica subja-cente às propostas apresentadas, bem como da natureza dos projetos políticos que atendem. Na realidade, distintas percepções da relação ou, se preferir-se, da contraposição entre legitimidade e governabilidade no processo político estão finalmente em debate.
A Constituição de 1988, resultado e ao mesmo tempo instrumento da construção democrática após a experiência autoritária, enfatizou, como seria de se esperar, a legitimidade. Daí, a proibição da reeleição, o segundo turno, a representação proporcional, a liberdade partidária, entre outros elementos. A busca da eficácia, em decorrência inclusive das dificuldades econômicas persistentes, tendeu a valorizar a governabilidade, seguramente em detrimento da legitimidade.
Se a legitimidade não pode comprometer a governabilidade, por sua vez a governabilidade não pode seqüestrar a legitimidade, sob pena de a experiência democrática ficar hipotecada. Se a legitimidade levada às últimas conseqüências facilmente degenera em seu oposto, a democracia plebiscitária, de raiz autoritária, a governabilidade levada a seus últimos limites facilmente conduz à reiteração do au-toritarismo. Como conciliar legitimidade e governabilidade, ainda mais sabendo-se que a tendência natural de todo governo é a de usurpar a soberania popular?