Era sempre de noite. Noite absoluta. Eu já pressentia a hora. Raimundo chegava sempre no meio de uma alta escuridão a me trazer o seu amor especial. Chegava chacoalhando as chaves como a um caxixi e já vinha gritando “Luzia, Luzia! Adivinha quem chegou?”. E eu respondia do quarto onde era sempre hora de passar batom sem espelho “Quem chegou foi meu amor…”. Eu adorava os sons do Rai: seu jeito de acender o fósforo hipnotizado para acender o cigarro da marca Monterey. Com estilo. O risco do palito era sempre melódico e bom e ainda me dava a impressão de que a vida estava toda certa e no lugar.
“ Luzia, vou te contar um segredo: gosto mais de fósforo do que de isqueiros. Gosto de ver a pólvora virar chama amarela-azulina.” Dizia isso e vinha pra cima de mim. Primeiro ia me margeando como a um rio. Então passava a contramão do gesto nos pêlos do meu antebraço e toda a penugem virava relva ao vento bom. Eu ficava era uma tonteira só de arrepio no corpo intenso e todo. “Mundo, você me ama?” A resposta era uma mordida leve e úmida no assanhado durinho bico do meu peito esquerdo. Impressionante como o Rai achava no meio da noite meu corpo, seus segredos, dobraduras e armadilhas. O companheiro é verdadeiramente o mensageiro da gente. Raimundo me dera informações básicas sobre mim: dizia do meu gosto, do negro definitivo de meus cabelos. Do meu jeito de falar, que ele via, sempre protegendo o peito, o plexo, os chacras e o timo. Ótimo amor esse Rai. Na rua, seguia em frente me guiando pela mão como um escudo que me protegesse contra os males do mundo; como se num inevitável embate entre mim e qualquer fato eu pudesse me espatifar.
“ Luzia…” Rai tinha uns silêncios muito grandes entre um pensamento e outro. Entre uma idéia e seu natural explicar. Demorava-se em pausas longas no que poderia ser apenas uma vírgula, uma breve respiração, apenas o tempo mínimo de elaborarmos o que vamos dizer enquanto o estamos dizendo. Mas Raimundo não.
Era demasiado generoso consigo mesmo através desses silêncios. Demorava e eu nunca fui boa nesse negócio de deixar silêncio passar em branco ou em silêncio mesmo. Sempre fui acometida de uma pressa repentina, uma contínua obsessão em preenchê-lo, atordoá-lo, em desmantelá-lo e encher de assunto o seu tenebroso abismo. Era como se houvesse perigo nessas pausas. O silêncio, meu Deus! Mundo, no entanto, me ensinara: “Minha morena linda, pelo amor de Deus, quando o silêncio for meu, deixa ele comigo, tá? Não me venhas tu com tuas palavras na pressa de preenchê-lo, combinado?”. Nesse dia aprendi que os amores devem existir com separação de silêncios.
“ Luzia, vou entrar em você, você deixa?”
Entre minhas pernas eu sentia a cor do desejo que vinha dele pelo piano dos dedos; o caminho morno da parte de dentro das coxas e depois sua espada, meu Deus! “Parece Ogum, Rai olha que eu te amo, Mundo, ai, Rai vem com seu tronco de macho de bicho, ai Mundo… quem será você? Será você tão lindo como me parece, ou estou enganada? Nunca saberei. Tá me ouvindo amor? Vem pra dentro de minha alma e me tape os buracos e dê sentido a todos os meus sentidos…” Eu seguia desesperada de prazer entre vagabunda e poética, e Raimundo só dizia: “Muito, toma meu bem… toma”. Arfava no meu ouvido até se render… Mundo virava mar caudaloso em mim. Quente.
Uma enorme noite sempre. Nesse dia, fiquei horas agarrada ao violão, ensaiando; iria fazer meu recital de música num clube de Três Pontas. Nesse mesmo dia, acabou não havendo acorde nem aplauso: Raimundo não viera me ver, me buscar. Telefonou: “Luzia não esqueça que te amo.” Dormi no ninar daquela frase. Amanheci e junto comigo amanhecera um corpo abafado, mormaçado… Não é que era o meu corpo? Avisava que ia chover. Prenúncio. Mas o dia só raiava mesmo quando ele chegava com suas mãos preciosas e precisas. Noite total, ele não veio. Tínhamos decidido nos casar na última noite; ganhei até um anel que me fazia gozar da sensação de trazê-lo ao dedo. Era de ouro cravejado de caquinhos de diamante. Aqueles pedacinhos transformaram minha inteira e nada alma em estado de noiva.
Outra noite ele não veio, então apalpando com cuidado cada tecla numerada do telefone, arrisquei… Não me ama mais? Lá do outro lado da linha, silêncio na garganta de Rai (silêncio dele ou meu?), insisti:
– Não me ama mais, Mundo?
– Não diga besteira, minha deusa!
– Então por que você não veio?
– Eu te amo, minha santa, depois conversamos.