A vitória eleitoral de George Bush nas eleições presidenciais de 3 de novembro referendou a tendência unilateral e expansionista de sua política internacional, frustrando todos os que apostaram numa mudança de rumo, com a vitória de John Kerry. Essa mudança era muito pouco provável que acontecesse, mas a reeleição de Bush, sem dúvida nenhuma, confirmou a opção belicista do seu primeiro governo, criando a impressão de que o poder americano não tem mais limites, ao contrário dos que vêm anunciando, já faz tempo, uma crise terminal da hegemonia mundial dos Estados Unidos. Do nosso ponto de vista, neste início do século 21, fica difícil sustentar a tese da crise final, mas tampouco acreditamos que tenha chegado a hora de um império mundial. Pelo contrário, os Estados Unidos enfrentarão dificuldades crescentes nas próximas décadas para manter o seu controle político e econômico global. Mas esses limites não podem ser deduzidos de macrovisões teleológi-cas da história, eles têm que se ser identificados a partir de uma análise cuidadosa das contradições das políticas americanas que poderão chegar a desestabilizá-las.
Deste ponto de vista, há de se partir da situação presente e do momento em que os Estados Unidos definiram seu novo inimigo, propondo ao mundo uma parceria estratégica global, para combater o “terrorismo internacional”. A principal dificuldade que se anuncia no futuro desta opção e desta política de combate ao terrorismo está no fato de se tratar de um inimigo que não se identifica com nenhum estado, não tem território e não estabelece nenhum tipo de comple-mentaridade econômica com seu adversário. Ele é universal e ubíquo; um inimigo tipicamente imperial da humanidade, e não de algum estado em particular. Aceitá-lo significa entrar numa guerra em que os Estados Unidos definem, a cada momento, quem é e onde está o adversário, numa guerra que não terá fim e que será cada vez mais extensa; uma guerra permanente e “infinitamente elástica”. Basta ver que no início se tratava de destruir a rede Al-Qaeda e o regime talibã do Afeganistão, mas hoje as tropas americanas já estão presentes – em nome da mesma guerra – na Argélia, Somália, Yemen, Afeganistão, Filipinas, Indonésia e Colômbia. A própria definição de inimigo já foi modificada várias vezes nos últimos anos: primeiro foram as “redes terroristas”; depois, o “eixo do mal”, constituído pelo Iraque, Irã e Coréia do Norte; e, finalmente, os “estados produtores de armas de destruição em massa”, categoria que inclui – neste momento – quase todos os aliados americanos na guerra do Afeganistão e do Iraque. As características deste novo inimigo bipolar escolhido pelos Estados Unidos não cumprem os requisitos fundamentais indispensáveis ao funcionamento do sistema mundial e, além disso, colocam dificuldades e limites imediatos para a execução desta nova estratégia de contenção global dos Estados Unidos.
Em primeiro lugar – do ponto de vista da segurança interna dos Estados Unidos – é da natureza do novo inimigo, segundo Donald Rumsfeld, mover-se no campo “do desconhecido, do incerto, do inesperado”, aproveitando-se de toda e qualquer “vulnerabilidade americana”. Uma ameaça, portanto, que pode ser nuclear mas também pode ser cibernética, biológica, química e pode estar no ar, na terra, na água, nos alimentos, enfim, em centenas de veículos ou lugares diferentes. Nesse sentido, nessa guerra escolhida pelos Estados Unidos, tudo pode se transformar numa arma, em particular as inovações tecnológicas dos próprios americanos. E tudo pode se transformar num alvo, em particular as coisas mais prezadas e desprotegidas dos norte-americanos. Daí a necessidade defendida pelo governo Bush de criar uma “rede cidadã” de espionagem, constituída por milhões de homens e mulheres comuns que gastariam parte dos seus dias controlando e vigiando seus próprios vizinhos. E é isto que explica, também, a criação pelo governo americano de novas “equipes vermelhas” encarregadas de planejar ataques contra os Estados Unidos, pensando como terroristas, para poder identificar as “vulnerabilidades” do país. Deste ponto de vista, a visão imperial dos Estados Unidos e a ubiqüidade do seu adversário “interno” exigirão um controle permanente e cada vez mais rigoroso da própria sociedade americana, visto pelo governo como um imenso universo de possibilidades agressivas, o que pode avançar numa direção paranóica e coletiva rigorosamente insustentável.
Em segundo lugar, do ponto de vista da segurança externa dos Estados Unidos, a nova estratégia cria uma situação de insegurança coletiva e permanente dentro do sistema mundial. O novo adversário não é, em princípio, uma religião, uma ideologia, uma nacionalidade, uma civilização ou um estado, e pode ser redefinido a cada momento pelos próprios Estados Unidos, sendo, portando, variável e arbitrário. E, nesse sentido, os Estados Unidos se guardam no direito de fazer ataques preventivos contra todo e qualquer estado no qual eles considerem existir bases ou apoio às ações terroristas, o que significa a auto-atribuição de uma soberania imperial. Este problema deverá se agravar, ainda mais, à medida que outros países, em particular as demais Grandes Potências, se sentirem ameaçados por forças consideradas terroristas, qualquer que seja a sua natureza, incluindo nações ou minorias externas ou internas aos seus territórios. Neste momento, todos os que tiverem a capacidade militar necessária seguirão o caminho aberto por Israel e seguido pelos Estados Unidos, optando pelos ataques preventivos. Portanto, a nova doutrina estratégica americana acabará tendo desdobramentos contraditórios e perversos, porque, estabelecido e aceito o princípio geral, não há nenhum acordo possível sobre o que sejam e quem sejam os terroristas, para cada uma das potências que detém atualmente os armamentos de destruição em massa. Tudo indica, portanto, que a estratégia da luta global contra o terrorismo acabará opondo, em algum momento, as próprias grandes potências. E, neste sentido, não apenas deverá aumentar as resistências dentro dos Estados Unidos como deverá acelerar o retorno do conflito entre as grandes potências, devolvendo a discussão sobre os limites do poder americano para o campo dos conflitos tradicionais do sistema político mundial. Neste campo, a verdadeira oposição ou resistência ao poder americano acabará vindo de onde sempre veio através da história: de dentro do núcleo central de poder do sistema mundial, das suas Grandes Potências.
A própria necessidade norte-americana de alianças e apoios nas guerras do Afeganistão e Iraque acabou devolvendo a liberdade de iniciativa militar ao Japão e à Alemanha, ao mesmo tempo em que permitiu à Rússia reivindicar de volta o seu direito de “proteção” na sua “área de influência” ou “zona de segurança” clássica, onde estão incluídos vários territórios que já foram ocupados militarmente pelos Estados Unidos, depois de 1991. O fato de a Europa continental começar a se rebelar contra sua situação de refém militar da OTAN e dos Estados Unidos prenuncia o retorno da luta pela hegemonia dentro do continente europeu, mesmo que seja na forma de uma luta prolongada pelo controle da União Européia. Nesta região, se a Inglaterra sair da União Européia, não é improvável que os capitais alemães acabem seguindo o caminho da história e estabelecendo uma nova e surpreendente aliança com o poder militar “ocioso” da Rússia. Enquanto isso, do outro lado do mundo, o sistema estatal asiático se parece cada vez mais com o velho modelo de competição pelo poder e riqueza que foi a marca originária do “milagre europeu”, desde o século 16. E não é provável que se repita na Ásia algo parecido com a União Européia. Pelo contrário, o que se deve esperar é uma intensificação da competição econômica e política pela hegemonia regional entre a China, o Japão, a Coréia, a Rússia e os próprios Estados Unidos.
Desta perspectiva, não há dúvida de que a grande novidade geopolítica e geoeconômica do sistema mundial, desde os anos 90, é a nova relação que se estabeleceu entre os Estados Unidos e a China. Ela reproduz e prolonga o eixo Europa-Ásia que dinamizou o sistema estatal e capitalista desde sua origem e a relação privilegiada dos Estados Unidos com o Japão, desde 1949. Mas, ao mesmo tempo, ela contém algumas novidades notáveis. Em primeiro lugar, o novo motor geoeconômico do capitalismo mundial deslocou e esvaziou o tripé da “época de ouro” da economia mundial – Estados Unidos, Alemanha e Japão – que funcionou de maneira extremamente virtuosa entre 1945 e 1980. Em segundo lugar, esta nova engenharia econômica mundial e a prolongada estagnação das economias alemã e japonesa vêm recolocando o problema dos seus projetos nacionais derrotados ou bloqueados e a necessidade de retomá-los como forma de sair da crise, sem contar com a ajuda americana. Em terceiro lugar, esta nova aliança apressou a volta da Rússia às suas posições clássicas de corte nacionalista e militarista, obrigada por sua posição eternamente dividida, entre sua presença na Ásia e na Europa. Mas não há dúvida de que o aspecto mais importante desta nova relação entre Estados Unidos e China é que ela é complementar e competitiva a um só tempo, sendo também econômica e militar.
Este foi o grande segredo do sistema mundial criado na Europa, no século 16: a inevitável com-plementaridade entre os principais competidores que disputam situações hegemônicas e que dinamizam o conjunto do sistema, durante algum tempo, graças à sua competição. Esta regra não foi obedecida durante a Guerra Fria, quando os Estados Unidos mantiveram sua competição militar com um país com o qual não mantinham relações econômicas importantes para o dinamismo de sua própria economia nacional (a URSS). Além disso, mantiveram relações econômicas dinâmicas com países que não tinham autonomia militar nem possibilidade de expandir seu poder político nacional (a Alemanha e o Japão). Tudo indica que agora, com a nova relação que vem se consolidando entre os Estados Unidos e a China, o sistema mundial deva voltar aos seus trilhos “normais”. Neste momento, os Estados Unidos não têm mais como se desfazer economicamente da China, mas chegará a hora em que os Estados Unidos terão que enfrentar o desafio da expansão chinesa, sobretudo quando ela deixar de ser apenas econômica e assumir a forma de uma vontade política hegemônica no sudeste asiático, muito antes, portanto, de se transformar num projeto de poder global.