Viajar centenas de quilômetros de uma cidade para a outra faz parte da rotina de boa parte dos professores. Muitos chegam a atuar em até três cidades, outros tantos em até mais. O cotidiano destes profissionais é de tirar o fôlego. Imprevistos, nem pensar. A rigidez do horário requer uma cronometragem exata do tempo, sem falar que não dá para esquecer livros, provas e nenhum material de apoio quando a distância entre o trabalho e a casa soma 500 quilômetros.
Além de terem o dia lotado e cronometrado, eles ainda correm atrás da titulação, uma exigência cada vez mais presente no meio acadêmico. As cobranças do cotidiano, aliadas ao estresse constante das viagens, em alguns casos acarretam sintomas que podem ir desde o desânimo até a depressão, advertem especialistas. O Extra Classe conversou com alguns desses profissionais para descobrir como é a rotina desses professores. A rotina é parecida com a dos antigos caixeiros viajantes, mas ao invés de vender mercadorias colocam à disposição de diferentes instituições sua força de trabalho e promovem o conhecimento por onde passam. Só para se ter uma vaga idéia, o somatório dos quilômetros percorridos por alguns deles durante um mês equivale a uma viagem de carro de ida e volta até Fortaleza, por exemplo.
Uma das razões para esta nova configuração na rotina de trabalho dos docentes foi o crescimento horizontal das universidades, que, a partir da década de 90, foram ampliando sua atuação por diversas cidades gaúchas. No site do MEC, constam 88 instituições de educação superior, entre públicas e privadas. Várias delas, principalmente as comunitárias, espalharam campi ou núcleos com oferta de curso superior pelo Estado afora, abrangendo atualmente mais de 100 municípios. Ivanira Falcade, professora de Geografia, é uma das que vive essa realidade. Lotada na Universidade de Caxias do Sul, ela trabalha no núcleo de Canela e no campus de Bento Gonçalves. A correria da professora começa na terça, quando sai às 16 horas do seu apartamento em Porto Alegre rumo a Canela, onde chega por volta das 18h30min. Alguns minutos antes de começar a aula faz um lanche rápido e aproveita para amenizar o estresse da viagem, que já começa na preparação. “Antes de pegar a estrada verifico se o celular está carregado; assim sinto-me mais segura, pois caso aconteça algo tenho como me comunicar.” A manutenção do carro é outra prioridade. “A cada mil quilômetros faço revisão”, salienta. No outro dia, já às 8 horas da manhã, volta à estrada. O destino agora é Bento Gonçalves. Lá, ministra aulas de quarta a sexta, das 19h às 22h30min e ainda se divide entre as atividades de coordenação do curso de Geografia e um projeto de extensão.
No total, Ivanira calcula que percorre cerca de 2 mil quilômetros/mês, entre as viagens e a locomoção dentro das cidades. Ela revela que sente o impacto causado pelo volume de tarefas e o estresse. “O cansaço é meio crônico, durmo de cinco a seis horas apenas e não consigo ter uma alimentação regular.” Confessa que sente falta da sua casa e da família, local em que geralmente só fica aos domingos, porque na segunda, mesmo em Porto Alegre, vai para a Ufrgs, onde está fazendo doutorado.
Já a professora de didática Maria de Fátima Canellas Benchaya viaja entre 175 a 400 quilômetros, dependendo da cidade em que irá atuar. Lotada na unidade da Ulbra de Torres, também trabalha no subcampus de Capivari do Sul, viagem que faz uma vez a cada 15 dias. Apesar de a distância ser de cerca de 87 km, o trajeto é meio conturbado, obrigando-a a sair de casa às 6 horas da manhã, pois leva duas horas para percorrê-lo. “Na maior parte da estrada não consigo passar de 80 km/h e nem ultrapassar”, explica. Quando o destino é Torres, aonde também vai a cada 15 dias, o ônibus oferecido pela instituição sai de Porto Alegre às 16h30min e vai direto para o campus. Após a aula, segue para o hotel e já se prepara para retornar às 8 horas do dia seguinte, onde permanece até às 16h30min. Como a Universidade não oferece transporte para voltar a Porto Alegre, sai direto para rodoviária. “É um dia bem ativo e corrido e só chego em casa por volta das 23 horas.” Somados aos mais de mil quilômetros percorridos mensalmente, tem o cansaço e o estresse. “Mesmo quando eu chego em casa, levo um tempo para conseguir relaxar e me desligar”, relata.
Além da Ulbra, Maria de Fátima dá aulas e assessoria pedagógica no Colégio Brasileiro de Estudos Sistêmicos, onde atua, inclusive, aos domingos. Nas segundas e terças-feiras, prepara aulas, resolve as pendências e reserva um tempo para escrever a tese do doutorado que está fazendo na Universidade de Santiago de Compostela, através de um convênio entre esta instituição e a Ulbra. Ao ser interpelada acerca do tempo destinado ao lazer, diz que a família já se acostumou. “Quando queremos nos reunir com os cinco filhos, fazemos um churrasco no domingo à noite.”
Da estrada para a sala de aula
Enfrentar as dificuldades e os riscos das estradas, muitas vezes em péssimas condições, é rotina de muitos profissionais das mais diversas áreas de atuação que necessitam deslocar-se entre uma cidade e outra. Entretanto, a desvantagem dos que lidam com a educação está no fato de que, em geral, ao chegarem aos seus destinos, vão direto para a sala de aula, sem intervalo para descanso. Esse movimento de idas e voltas dos professores tem semelhança com a atividade de Régis Mattos, representante comercial de confecção que viaja por 40 cidades do Estado. Em comum, eles têm a rotina do deslocamento. “As pessoas que estão sempre na estrada correm mais riscos de sofrer acidentes e isto sempre dá uma certa tensão”, diz Mattos. Realidade bem conhecida pelo professor Varlei Machado Perez. Morador da cidade de Silveira Martins, viaja para a Urcamp de São Gabriel três vezes por semana. A fadiga acarretada pelo trajeto é maximizada pela sensação de perigo. “As péssimas condições da estrada fazem com que a gente fique tenso com qualquer buraco que o ônibus passa, além do medo de assalto”, desabafa. Ele conta que a sensação de alívio dos professores quando retornam à Santa Maria é evidente. Alívio mesmo, diz que só sente no outro dia, quando chega em casa e pode ficar tranqüilo em frente ao seu computador. “Adoro ficar estudando, pesquisando, mas levo tempo para me recuperar do cansaço”, comenta. Somando as idas e vindas, Perez viaja cerca de 19 horas e 30 minutos por semana. Caso o ritmo seja o mesmo, em dois semestres (cerca de 10 meses) seriam por volta de 780 horas viajando.
Psicóloga alerta para consequências
O cansaço físico e o estresse são os sintomas mais perceptíveis nas pessoas que enfrentam este tipo de rotina, podendo, inclusive, levar à depressão, segundo a psicóloga Luciana Suarez Grzybowski. Coincidentemente, ela ministra aulas na Universidade Comunitária de Chapecó, atividade que lhe obriga a fazer um percurso de mil quilômetros por semana. Experiência que lhe dá respaldo para analisar com conhecimento de causa a situação, pois sente na pele o drama dos docentes. “A vida fica meio confusa, é preciso criar rotinas, o que não é muito simples”, explica.
Aspectos como a falta da convivência com a família e com o espaço da casa são pontos que requerem dos docentes uma motivação e um retorno afetivo da atividade. “Gostar do que faz é fundamental para agüentar o ritmo e tornar menos penosa essa rotina; não pode prevalecer só a questão financeira”, avalia a psicóloga, ressaltando que as pessoas devem colocar na balança que vão abrir mão de passar tempo com os amigos, cônjuge, namorado e filhos. “Há perdas de convivência e trocas, tanto afetivas quanto culturais, e alguns relacionamentos não toleram isso e pode haver rompimentos.”
Em relação ao medo de acidentes, a especialista comenta que a maioria das pessoas nem toca no assunto. “Quem tem este cotidiano desenvolve uma autodefesa e nem pensa nisso, senão fica muito difícil”, comenta. Batalha que a própria psicóloga enfrenta após sofrer um acidente no mês passado sem nenhuma conseqüência grave. Para Luciana Suarez, o cotidiano de idas e vindas não é o ideal, mas, para muitos, é necessário. “Mesmo que as pessoas se esquematizem da forma mais organizada possível, há sempre o comprometimento da qualidade de vida”, ressalta.
Remuneração nem sempre é satisfátoria
Há muitos anos, durante as negociações anuais referentes à Convenção Coletiva de Trabalho (que regula junto com a CLT as relações de trabalho entre instituições de ensino e professores), o Sinpro/RS vem tentando negociar com os empregadores a remuneração do tempo de deslocamento dos docentes, também chamada de remuneração da hora in itinere.
Marcos Fuhr, diretor do Sinpro/RS, ressalta que as instituições se negam a admitir que o período em que o professor está viajando de um campus para outro, muitas vezes cumprindo desdobramento de contrato, não pode ser utilizado para nenhuma outra atividade. “Em muitos casos os docentes são contratados para trabalhar em um determinado local e acabam indo dar aulas fora da sede, sendo que não ganham pelo período em que estão se locomovendo. Este ponto voltará a pauta na próxima campanha salarial, durante as negociações”, explica.
A obrigatoriedade das instituições em pagar as despesas de deslocamento, estadia e alimentação vem sendo cumprida. No entanto, além de os docentes não serem remunerados pelas horas de locomoção, não há nenhuma cobertura planejada em caso de acidente, risco ao qual ficam mais expostos que a maioria das pessoas. “Em um estado em que as estatísticas de acidentes nas estradas são assustadoras, este é outro aspecto que deveria ser considerado pelas instituições”, finaliza Fuhr.
Leia também artigos publicados sobre o tema deslocamento do professor/hora in itinere nas edições do Extra Classe 84 e 85, respectivamente publicadas em agosto de 2004 (www.sinprors.org.br/ extraclasse/ago04/sindicato12.asp) e também em setembro de 2004 (www.sinprors.org.br/extraclasse/set04/sindicato5.asp).