Se existe um boato e uma verdade sobre um determinado fato, publique-se o boato. A antiga e conhecida historinha define muito bem o que parece ter acontecido com Lupicínio Rodrigues, o homem que não inventou a dor-de-cotovelo, não compunha apenas sambas e também não era nenhum beberrão, como se supõe que seja um boêmio profissional. No ano em que são lembrados os noventa anos de seu nascimento e os trinta de sua morte, a história já está se encarregando de rever muitos dos mitos e das lendas que foram forjados em torno dele. A boa notícia: como acontece com os grandes artistas, quanto mais se investiga a obra de Lupicínio, mais expressiva e atual ela se mostra. O jornalista Mário Goulart, que em 1984 escreveu um livro sobre ele, atesta: “Praticamente tudo que até então se sabia vinha de duas fontes, os amigos-biógrafos Demós-thenes Gonzales e Hamílton Chaves. De lá para cá, as coisas melhoraram. Penso ter contribuído um pouco, colhendo o depoimento de duas dezenas de amigos e parceiros do Lupi”. Alguns episódios são desconhecidos até hoje, como a verdadeira história que teria inspirado a música Ela Disse-me Assim, que Lupicínio jurava nunca revelar. “Lembro de ter ouvido algo vago na época, tão vago que decidi não pôr no livro”, conta Goulart. Mas complexo mesmo é definir em poucas palavras o tipo de compositor que ele era. É bem verdade que se tornou um especialista no samba-canção, talvez o maior nome do gênero, rivalizado apenas por Herivelto Martins. Acontece que Lupi também deixou sua marca em outras searas. Se o negócio é samba de gafieira, com muito teleco-teco, basta lembrar um de seus maiores sucessos: Se Acaso Você Chegasse, que estourou em 1938 na interpretação de Cyro Monteiro, e outra vez em 1968, com Elza Soares. Reprodução: René Cabrales Reprodução: René Cabrales
Sambista sim, mas de bombacha e tudo
Além de provar que gaúcho sabe sambar, Lupicínio também celebrou as coisas da terra, em toadas gauchescas e outras músicas em que escancarava (quando não exagerava) seu amor pelo sul. Quem diria que sairiam das mãos de um sambista versos como: “Amigo, boleia a perna / Puxe o banco e vá sentando / Enquanto a chaleira chia / O amargo vou cevando”.
Nesse sentido, Lupicínio foi um precursor, e seu grande louro, a canção Felicidade, de 1947. Não que ele de fato vestisse a bombacha, mas em músicas como Jardim da Saudade (1956) chega a comparar o Rio Grande do Sul com o paraíso. E, na balança, o paraíso sai perdendo.
Algum tempo depois, na década de 70, ele participou de uma Califórnia da Canção, mas o resultado foi desastroso. Lupi foi vaiado vigorosamente enquanto cantava um pot pourri de suas canções. “Torciam o nariz pra ele”, lembra o músico e pesquisador Roberto Campos. “Até hoje muita gente dentro do nativismo não aceita muito bem o Lupicínio.” Ironicamente, foi uma toada gauchesca que fez seu nome ressurgir após anos de um quase esquecimento, quando as músicas do momento eram rock, bossa nova, entre outros.
Pouco antes de Lupi morrer, em 1974, Caetano Veloso realizou uma gravação histórica de Felicidade. Nunca é demais relembrar alguns versos: “Felicidade / Foi-se embora / E a saudade no meu peito / Ainda mora…”. E até hoje muita gente pensa que se trata de uma música folclórica, de domínio público. Nada disso. É que Lupicínio, como Drummond, era um poeta de sete faces, e nem todo mundo está acostumado a associar seu nome a todas elas.
A voz do povo em qualquer época
“Lupicínio esquecido?”, perguntava-se Augusto de Campos em um célebre artigo escrito em 1967. A resposta veio não apenas com Caetano, mas com praticamente toda a geração da música brasileira que despontou na época. Gal Costa (Volta), Paulinho da Viola (Nervos de Aço), Elis Regina (Cadeira Vazia e Maria Rosa), enfim, uma verdadeira trupe regravou suas músicas, apresentando a um novo público.
Como dor-de-cotovelo e sentimentos assemelhados são temas que não têm prazo de validade, Lupicínio não pertence mais a uma determinada época, e sim a várias. Compôs músicas que podem ser consideradas atemporais, e por isso ainda estão aí, vivinhas, na lembrança das pessoas.
Lupi não teve formação musical, compunha apenas assobiando, e mesmo assim criou melodias e estruturas harmônicas que pegam no contrapé muito músico tarimbado por aí. Também não completou seus estudos no colégio e acabou encontrando soluções criativas e inovadoras para muitas de suas letras.
Mas Lupicínio gostava mesmo era de cantar do jeito que o povo fala, como em uma conversa de boteco. Não é difícil encontrar, por exemplo, problemas de concordância em suas letras. Amigos e parceiros até tentavam corrigir, mas ele raramente dava o braço a torcer. Além disso, essa postura acabou gerando grande benefício: como também se recusava a usar palavras e expressões empoladas, sua música permanece atual, na riqueza de sua simplicidade. Trinta anos depois de sua morte, Lupicínio ainda está com cara de moço.