Em meio ao bombardeio diário de imagens com conotação erótica em quase todas as mídias e de muita pornografia nas restantes e a uma avalanche de obras eróticas ou abertamente pornográficas que chegam às livrarias com títulos que vão de How to make love like a porn star (Como fazer sexo como uma estrela do cinema pornô), da atriz pornô Jenna Jameson, à The Sexual Life of Catherine M. (A vida sexual de Catherine M.), da crítica de arte Catherine Millet, natural seria pensar que, passadas mais de quatro décadas desde o início da propalada Revolução Sexual, de fato houvesse uma revolução. Ledo engano. Estudos e teorias recentes jogam por terra a idéia de uma transformação radical do comportamento sexual de homens e mulheres.
Em uma das mais novas abordagens sobre a sexualidade humana, o sociólogo francês Michel Bozon desmistifica a idéia de revolução. Autor do recém-lançado Sociologia da sexualidade, (Editora FGV, 172 págs.), Bozon diz em seu livro que, na realidade, a moral contemporânea continua sendo uma moral repressora. “A busca do prazer sexual continua sendo alvo de condenação. O sexo ainda se constitui em ameaça e a moral estigmatiza a sexualidade.”
Em entrevista para o Extra Classe, por telefone, em sua casa em Paris, o sociólogo propõe a substituição da expressão “revolução sexual” por “nova normatividade contemporânea das condutas sexuais” (nome um tanto quanto longo para ser adotado pela grande mídia, sempre em busca de rótulos novos e que vendam fácil seus produtos). “As normas é que mudaram. Acho muito falsa a idéia de que normas e tabus tenham sumido. Essas coisas se recompõem sempre. O inconsciente social da sociedade não muda, ou muda muito pouco”, afirma Bozon. Tanto não muda que, no que se refere à igualdade de direitos, ainda persiste a idéia de que homens podem ter determinados comportamentos e mulheres não.“Parece ter muita igualdade entre homens e mulheres, mas existe uma hierarquia entre os dois, e isso faz parte do inconsciente e coexiste com a idéia de que há igualdade numa camada mais profunda do universo do inconsciente social”. Bozon, que trabalha no Instituto Nacional de Estudos Demográficos (Ined) na capital francesa, não só põe em dúvida expressões como “revolução sexual” e “liberação geral” como explica que seu livro procura ampliar o olhar sobre a sexualidade. Para ele, a expressão “revolução sexual” não é a mais adequada para definir um conjunto de mudanças que se verificou a partir dos anos 60 e que retratam o resultado de uma nova experiência pessoal e de transformações sociais. Para ele, o que se convencionou chamar de “revolução sexual” foi apenas um processo de individualização dos comportamentos, que levou à troca do controle externo pelo controle interno dos sujeitos. Ou seja, o que ocorreu foi a substituição da moral e dos bons costumes pela decisão pessoal.
Como nossos pais
Se por um lado a “revolução sexual” não chegou às vias de fato, há quem defenda que a humanidade vive o momento mais propício para que isso ocorra. Também por telefone em sua casa no bairro Sumaré, em São Paulo, José Ângelo Gaiarsa, psiquiatra e escritor, autor de mais de 25 obras, entre elas Amores Perfeitos (Ed. Summus), diz, otimista, que hoje “vivemos condições ótimas para uma revolução sexual”. “A sociedade está garantindo mais liberdade de experiências, pois há menos repressão familiar, menos repressão social, mais separação e divórcio. Há mais encontros, mas poucos aproveitam o clima; as pessoas continuam fazendo o mesmo que os seus pais faziam”, critica. Para o psiquiatra, que durante anos teve um espaço diário na TV Bandeirantes, está diminuindo o prazo esperado dos relacionamentos (monogamia vitalícia), e surgindo, por isso, a possibilidade de estabelecer relacionamentos mais curtos, mais intensos, mais vivos e mais pessoais. Gaiarsa, que neste mês de outubro lança seu novo livroSexo, tudo o que ninguém fala sobre ele (Ed. Summus), lamenta que a educação sexual seja tratada de forma impessoal na televisão e nas escolas e defende que “educação sexual é aprender a fazer carícias”. “Pela pele e pelos movimentos é que se conhece o parceiro. A intimidade é conseguida através da carícia da dança, a dança inventada pelos dois, a dança de Shiva”, sugere Gaiarsa. Além disso, ele afirma que atualmente não faltam relações sexuais, mas relações pessoais.
Admirador dos números e apaixonado pela neurofisiologia, Gaiarsa explica que o homem tem dois metros quadrados de pele e, entre eles, 500 mil sensores táteis. “Como alguém pode dizer que conheceu toda a pele do outro?”, pergunta criticamente ao constatar que hoje o tocar foi substituído pelo olhar. “As pessoas gastam muito dinheiro hoje em dia para serem olhadas, mas não para serem tocadas. Basta ver o número de cirurgias plásticas realizadas, a quantidade de cosméticos vendidos e a proliferação de academias de ginástica”, observa. “Ainda existe muita objeção contra o toque. A nossa educação consiste em engessar o corpo. Precisamos libertar-nos dos ‘nãos’ ouvidos na infância, mas para libertar-se é preciso ser um libertário”, adverte.
Assim como Gaiarsa, o filósofo Gilles Lipovetsky, que em agosto passado concedeu entrevista para o Extra Classe (Ano 10, Número 84) também acredita que, em geral, as pessoas têm uma vida sexual bastante comedida e que há uma escassez de relações pessoais. “Os homens e as mulheres continuam tendo um certo autolimite e um número de parceiros sexuais limitado. De um lado, parece que tudo é possível, tudo é permitido, e não é bem assim. Em geral, a vida sexual das pessoas é bem-comportada”, afirma. Autor, entre outros, de A Era do Vazio (1983) e Metamorfoses da Cultura Liberal (2004), Lipovetsky diz que, no que se refere à sexualidade, temos uma lógica do excesso e que um exemplo típico é a pornografia com suas imagens, cenas supervalorizadas que mostram uma sexualidade sem nenhum limite, onde tudo é possível. “O paradoxo é que, na prática cotidiana, a vida sexual não está a esse ponto de excesso. Nos dizem muitas vezes que o homem hipermoderno sofre com sua sexualidade, com as normas ditadas pela chamada tirania do prazer. Acho que isso não é bem verdade. Os novos dramas não estão tão ligados à sexualidade, mas à comunicação na relação com os outros”, afirma.
Sexo, preconceito e falta de educação
Ilustração: Claudete Sieber
Ilustração: Claudete Sieber
Se em casa pouco mudou na mentalidade das pessoas, na escola, muito há que ser feito. Pesquisa recente da psicodramatista Regina Célia Pinheiro da Silva mostra que o despreparo dos educadores acaba privando o jovem do direito de conhecer tudo o que está relacionado à sexualidade humana, como a questão de gênero, o direito ao prazer, as formas de discriminação e o planejamento familiar. Ela pesquisou 65 produções brasileiras, entre dissertações e teses de pós-graduação, que tratam da educação sexual no espaço escolar e constatou que grande parte dos profissionais encarregados de dar orientação sexual está despreparada e apresenta dificuldades tanto por questões pessoais quanto pela falta de informações sobre o tema. Os trabalhos foram objetos de estudo para a dissertação de mestrado defendida por ela. As produções que investigaram as posturas e as práticas pedagógicas, segundo Regina Célia, afirmam que, ao abordar o assunto, professores/educadores tomam por base seus próprios valores, com condutas discriminatórias e posturas pouco reflexivas. “Foram verificadas atitudes retrógradas, controladoras e repressivas em relação à sexualidade. Cabe ressaltar que na minha pesquisa incluo, como educadores, profissionais da área de saúde que lidam com educação sexual no espaço escolar, na educação superior ou no ensino médio, preparados para esta abordagem.”