OPINIÃO

Contos de Vista

Publicado em 22 de setembro de 2004

Tive um amor que era fotógrafo e ia na Central do Brasil pegar um trem e comprar papel “efequatro” mais em conta. Pegava o trem e ia lá na fartura de fatos que méires e santacruzes têm. Voltava, e eu perguntava animada: “E aí, me conta?” “Me conta o quê, Nega?” “Me conte o que viu, o que da alquimia alegórica dos fatos cotidianos teve a honra de se desvendar aos seus olhos?” Ele dizia: “Foi tudo normal, ué!” Eu pensava: “Meu Deus, o mundo é tão bem dotado de tramas e cenas, de personagens e rendas, bordadas todos os dias na nossa cara. É impossível que ele, que é fotógrafo, não tenha visto nada.” E ele pensava: “Ela é doida!”

Sei hoje que meus olhos são viciados em ouvir a conversa dos outros nos ônibus, nos bancos, nos banheiros, nas filas. Meus olhos são viciados em despir senhoras pudicas e bichas halterofilistas que cruzam com elas em Copacabana. Meus olhos têm ganas pralém do que tateiam.

Tecem mudos segredos que guardam a cara dos trocados no polegar intencionado a raspar minha palma em meio a aparente normalidade do troco. Meus cílios se escancaram para que eu veja a moça Selma que deve ser noiva e mora durante o expediente numa saia de tergal da repartição e que é sempre feliz às quartas, sábados e domingos. Já sabe o nome dos filhos que há de gerar no garantido casamento com Jaime. Tem bobs infalíveis no impecável cabelo de Henê e mexas pontuais que soltará no torpor dos pagodes de sábado à tarde. Vai com Jaime.

Ah, Jaime, onde estará você que não é meu pralém de poder ser meu? Ah, Jaime, por onde bares andará você que me faz ser feliz assim, simples, sem teorias inférteis sobre o assunto felicidade? Ah, Jaime da Selma, que vejo na rua e batizo, e nomeio, e amo.

Meus olhos navegam no script alheio. No bom da vida dos outros no ponto em que a invejo só por não ser a minha. Meus olhos constroem roteiros com as cicatrizes e risos dos passantes, com matizes e rugas, vigas e costuras maleáveis que tecem o enredo alheio. Meus olhos não descansam e se contam o que contam é porque estão condenados. A inspiração que segue a orquestra desse respirar os obriga a tocar o instrumento das versões. Os obriga a visões de vista e visita.

Ai, a verdade e sua infinita tentação de tentáculos! Quantas infinitas pernas possui uma verdade! Meus olhos estão viciados em lira. Dependentes do sublime e animado tráfico de aconteceres que os corteja todos os dias.

Meus olhos vêem os tantos cinco sentidos do dia e copia a cria. Como quem vê o que todo mundo vê, mas usa o olhar como anzol. Rede. Cardumes se aproximam… e assim, sem nome de pescadores, pescam. Pescam. Olham o mundo como quem abre as cortinas.

Como quem passa rímel.

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