CULTURA

O amor na era do excesso

Keli Lynn Boop / Publicado em 22 de agosto de 2004

Há quem conteste, mas Cupido e Psiquê são mais do que protagonistas de uma poética fábula de amor da mitologia, pois embalam o desejo e os devaneios de boa parte da humanidade que aspira a (re)encontrar, se não a sua metade – os psicanalistas de ponta já não trabalham mais com esta idéia do amor romântico –, a pessoa com a qual vai se unir numa simbiose que traga paz, aconchego, prazer e satisfação, não necessariamente nesta ordem. Enquanto a narrativa dos heróis míticos ronda o imaginário das pessoas, o desafio de traduzir o significado do amor e suas implicações na vida cotidiana seduz romancistas, poetas, filósofos e, nas últimas décadas, psicólogos, psiquiatras e sociólogos das mais variadas vertentes.

Tema instigante e de complexidade ímpar, não poderia resultar em nada muito diferente: prateleiras de livrarias abarrotadas com dezenas de títulos que vão de manuais práticos para conquistar ou esquecer um amor malcorrespondido a ensaios eruditos que transitam pelos mais variados assuntos tendo como pano de fundo o amor romântico. O mais novo estudo acadêmico sobre o amor e que discute as perdas e ganhos das relações afetivas vem de uma das referências fundamentais da sociedade contemporânea: o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Recém-lançado no Brasil e intitulado Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos, o estudo de Bauman analisa o fenômeno da paixão a partir de características que marcam a sociedade contemporânea: capitalismo pós-industrial, consumo exacerbado, movimento, efemeridade e fragilidade dos laços entre as pessoas. O impacto desses fenômenos nos relacionamentos afetivos, segundo Bauman, os transformaram em amores líquidos.

“ Entre os valores da vida, a ‘síndrome de consumismo’ destronou a duração e enalteceu a transitoriedade. Ela dá maior valor à novidade que à duração. Isso encurtou acentuadamente o período de tempo que separa não apenas o desejo de sua realização mas também a utilidade e desejabilidade das posses de sua inutilidade e rejeição. Entre os objetos de desejo humano, ela coloca a apropriação (rapidamente seguida do descarte) no lugar das posses. A ‘síndrome de consumismo’ tem tudo a ver com excesso de velocidade e lixo”, disparou Bauman em entrevista para The Social Edge e publicada recentemente no jornal A Folha de São Paulo.

Mas a pertinência do livro de Bauman, autor de O mal-estar da pós-modernidade, Globalização, as conseqüências humanas e Modernidade liquida está, entre outras coisas, no fato de ele, embasado nas idéias dos pensadores franceses Jacques Derrida e Emmanuel Lévinas, chamar a atenção para a baixa cotação da alteridade – ou seja, o reconhecimento do outro – não apenas nas relações amorosas. Bauman adverte que o “investimento” no amor – e, portanto, no outro – está caindo em desuso e sendo trocado por redes de relações nas quais o mais importante é o movimento, marca fundamental da sociedade pós-moderna. Com a prática do entrar e sair de redes, diz ele, as relações não podem fazer exigências que capturem o indivíduo, indisponível para o “investimento afetivo”, o que também contribui para que as pessoas tenham desaprendido a manter laços a longo prazo.

É oportuno ressaltar que nem sempre laços e relacionamentos sólidos são mais satisfatórios. Prova disso é que cresceu e muito as separações de casais nos últimos anos. Nos Estados Unidos, por exemplo, em 10 anos aumentou em 50% o número de divórcios e, no Brasil, 31,56%, segundo os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatítica (IBGE).

Um ato de transgressão

Se “amar, em última instância, é um ato transgressor”, conforme escreveu George Bataille (1867-1962), essa experiência pessoal e individual – característica do amor romântico, surgido com a poesia lírica dos trovadores do século XII – foi capaz de tornar grandioso o Ocidente, distinguindo-o de todas as outras tradições, segundo uma das maiores autoridades no campo da mitologia em nosso século, Joseph Campbell (1904-1987). Para Campbell – que dedicou um capítulo ao tema em seu livro O Poder do Mito –, no início, a coragem de amar se tornou a coragem de afirmar uma experiência individual contra a tradição da Igreja, se tornando importante na evolução do Ocidente na medida em que deu
a ele “ênfase no indivíduo, no sentido de que cada um tivesse fé na sua própria experiência, em vez de simplesmente repetir o que lhe era imposto pelos outros”.A palavra “amor”, observa Campbell, lida ao contrário é Roma, a Igreja Católica Romana, que justificava casamentos que não passavam de arranjos políticos e sociais.

Quem tratou de forma exemplar as origens do amor romântico na cultura ocidental foi o filósofo e ensaísta suíço Denis Rougemont (1906-1985). Em seu ensaio erudito História do Amor no Ocidente, publicado pela primeira vez em 1939, Rougemont pondera que a humanidade deseja mais secretamente o obstáculo e, se ele não existir, ela o cria. “Parece-me que isso explica boa parte da nossa psicologia. Sem entraves ao amor, não há ‘romance’, escreveu. Uma rápida olhada na infelicidade que ronda os amantes dos clássicos da literatura e da mitologia ocidental ratificam as palavras de Rougemont. Que o digam Tristão e Isolda, Paolo e Francesca, Romeu e Julieta, entre tantos outros.

Se Freud dizia que precisamos amar para não adoecer, e Anaïs Nin que a única anormalidade é a incapacidade de amar, as estatísticas mostram que os homens separados têm expectativa de vida menor do que a dos casados. “Em casos extremos de desilusão amorosa, a pessoa torna-se anoréxica e, enfraquecida, transforma-se num alvo fácil de doenças”, lembra o psicólogo clínico e professor da USP, Aílton Almeida.

Amor à la carte

Doutor em Psicologia pela USP (Universidade de São Paulo) e professor da mesma Universidade, o psicólogo clínico Aílton Amélio criou na USP o Centro de Estudos da Timidez e do Amor, do qual é coordenador, além de três disciplinas sobre relacionamento amoroso, uma na graduação e duas na pós. Autor de O Mapa do Amor (Editora Gente), em entrevista por telefone para o Extra Classe, Aílton diz que a palavra amor esconde uma diversidade de concepções e que atualmente existem mais de 50 teorias científicas que procuram classificar os estilos de amor. Em seu livro, ele identifica seis (os primários Eros, Estorge, Ludus; e os secundários Mania, Pragma e Ágape).

Quanto às teorias, ele cita algumas, como a do antropólogo canadense John Allan Lee, autor da teoria das cores (Colors Of Love). “O olho humano só tem receptor para três cores (amarelo, azul e vermelho). No entanto, somos capazes de perceber mais de 8 milhões de nuances. O Lee achava que combinando três tipos de amor poderia gerar milhares de combinações; segundo ele, de forma análoga à percepção de cores, existem três estilos primários de amor: Eros, Ludos e Estorge. As combinações entre diferentes intensidades desses três estilos resultam em um número imenso de variedades de estilos de amor (essa variedade é tão grande que, a rigor, a forma de amar de cada pessoa é única)”, explica Aílton, que diz que trabalha principalmente com três ou quatro teorias e que “nenhuma delas explica tudo e é suficiente para explicar tudo; dependendo da necessidade, recorro a uma teoria ou a outra”.

Sthendal e a loucura rara da paixão

Em De l’amour (Sobre o amor), o escritor do século XVIII Stendhal, referiu-se a uma espécie de loucura muito rara na França, batizada por ele de amor-paixão. O tratado de Stendhal fala de quatro amores: o amor-paixão, o amor-gosto, o amor físico e o amor-vaidade. Baseado no autor de O Vermelho e o Negro e A Cartuxa de Parma, o psicólogo clínico e autor do Mapa do Amor, Aílton Almeida, criou um método para “desapaixonar” os amantes desiludidos. “Sthendal dizia que para se apaixonar é necessário: admirar, ter esperança e ter uma certa insegurança. Em minha clínica inverti essa teoria. Trabalho, então, com a admiração, porque 50% do que achamos do outro é idealização. Se a pessoa tem esperança de que o outro vai voltar ou que o outro gosta dela, ajudo-lhe a ver se a sua esperança procede. Se o que ela acredita não é verdade, se ela é rejeitada de uma forma muito clara, aí acaba a esperança. É um sofrimento intenso, mas, em geral, logo ela deixa de amar. Mas isso tem que ser trabalhado em clínica, embora falar seja fácil, o tratamento tem um método nas sessões terapêuticas”, explica.

As substâncias do sentimento

Os estudos científicos dizem que quem comanda as emoções e os sentimentos e, portanto, o amor é o cérebro. Embora ainda falte muito a ser descoberto, já se sabe que ver o ser amado, tocá-lo, beijá-lo ou escutar aquela música que marcou o primeiro encontro lembram ao cérebro que estas experiência são positivas. A partir daí, o cérebro ativa no sistema límbico (região central no hemisférios cerebrais que apenas os mamíferos possuem) os sentimentos e emoções que, neste caso específico, são muito prazerosas. A
ativação de um circuito cerebral, o dopaminérgico, chamado também de “circuito do prazer” traz a sensação de bem-estar da proximidade do objeto do amor ou da paixão. O mesmo sistema está ligado à dependência de drogas e a satisfação que o dependente tem ao usá-las. O sexo também ativa esse circuito, do qual a principal substância e a responsável pela sensação de prazer quando liberada no cérebro, com especial abundância no sistema límbico, é um neurotransmissor chamado dopamina.

O romance na sociedade de consumo

Para Flávio Gikovate, médico psiquiatra que já atendeu mais de 7 mil pacientes em mais de 30 anos de trabalho e autor de mais de duas dezenas de títulos sobre amor e sexualidade, a idéia do amor romântico está ultrapassada, “embora a sensação de incompletude que todos temos dê a impressão realmente de que somos uma metade e de que precisamos encontrar a outra parte para nos completarmos”. Gikovate acredita que a idéia de fusão que o amor romântico sugeria hoje é “insuportável, porque o mundo moderno evoluiu de uma forma mais individualista, o que não é ruim, é só uma coisa diferente, de tal maneira que as pessoas não podem mais fazer a fusão como antigamente sem que isso implique concessões grandes demais”. Para ele, “o
o amor novo, possível, é um amor fundado em respeito que, na verdade, seria uma espécie de aproximação de dois inteiros que vão ficar juntos na medida em que têm interesses em comum”. Segundo ele, “essa aproximação de dois inteiros afins e respeitosos das diferenças é que chamei de mais amor do que amor ou +amor, que é uma espécie de romantismo-modelo século 21 e não modelo século 19”.

Conferencista e autor consagrado, na véspera de participar de um Seminário de Educação em julho, em Porto Alegre, Gikovate concedeu entrevista para o Extra Classe, na qual falou sobre o amor, tema que, garante ele, “continua muito malcompreendido pelas pessoas, mesmo pelos profissionais de psicologia que lidam muito mal com ele e têm muito poucas idéias bem constituídas sobre o amor”.

Extra Classe – A professora de comunicações na Universidade Northwestern (Illinois/EUA), a escritora Laura Kpnis, contesta em seu mais recente livro Against Love – A Polemic (Contra o Amor – Uma Polêmica) alguns conceitos mais sagrados da sociedade, como o amor, o casamento e a monogomia. Ela diz que as pessoas estão extremamente infelizes por que se sentem obrigadas a se apaixonar, que o amor é uma mentira e que há uma pressão social e familiar para que as pessoas se apaixonem. O que senhor pensa sobre isso?
Flávio Gikovate – Não acho que o amor é uma mentira. O sonho romântico nunca desapareceu, mesmo com toda a pressão da cultura de sexo livre e sem compromissos; toda cultura gosta de gente infeliz, porque gente infeliz é bom consumidor. A pressão da sociedade não é no sentido de as pessoas se apaixonarem, a pressão é no sentido de a pessoa ser boa paqueradora; de a mulher ser linda, magérrima, peituda e muito bem sucedida com uma fila de homens atrás e cheia do dinheiro. Agora, o anseio amoroso está dentro das pessoas, não desapareceu apesar de toda a pressão individualista e da pressão pró-sexo.

Extra Classe – Afinal, o que é o amor?
Flávio Gikovate – O amor não é propriamente um instinto, pois o instinto é definitivamente da natureza humana, mas também não é uma coisa só cultural, ele tem a ver com essa experiência de que a vida é gerada no útero, e essa experiência é de aconchego e a primeira da vida de todos nós; então, todos nós temos essa espécie de nostalgia de um momento maravilhoso que se quebrou e que ficamos querendo reencontrar, isso aparece inclusive no discurso religioso. Está escrito no Gênesis claramente que a vida começa no paraíso e depois existe a expulsão do paraíso, e existe mesmo, a vida começa no útero, que é um paraíso tudo de bom, redondinho, aguado e com comida, sem desconforto, e depois existe a ruptura disso com o nascimento, deixando um
buraco, uma incompletude que pede uma reaproximação com o objeto definido para que se tenha uma sensação mais parecida possível com aquele paraíso perdido.Na realidade, o amor em si é uma coisa simples, é uma sensação de aconchego legal e gratificante e que, teoricamente, seria muito fácil de ser conseguido se as pessoas, pelo menos, soubessem o que é. Infelizmente as pessoas em geral e até os psiquiatras não sabem. Outro dia, estava lendo um texto numa revista americana que é referência mundial em psiquiatria em que o autor dizia que a grande verdade é que, até hoje, nós não sabemos o que é o amor. Fiquei com vontade de escrever para ele e dizer que eu sei muito bem o que é o amor. O amor é a vontade de refazer essa simbiose que, infelizmente, pede fusão, e que nós temos que amadurecer para fazer somente esta aproximação sem fusão para que isso possa funcionar bem nos dias de hoje. Não tem nada a ver com sexo e é muito fácil saber o que é.

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