ECONOMIA

Plano Real: Balanço dos 10 anos

Marco Aurélio Weissheimer / Publicado em 22 de julho de 2004

No dia 1° de julho de 1994, o Brasil acordou com uma moeda nova e um plano econômico destinado a conter a inflação e abrir um novo ciclo de crescimento no país. O primeiro objetivo foi cumprido, mas o segundo permanece uma promessa não-realizada até hoje.

Em seu livro 60 lições dos 90 – Uma década de neoliberalismo (Record, 2001), José Luís Fiori, professor de Economia Política Internacional nas universidades federal e estadual do Rio de Janeiro, convida seus leitores, logo no primeiro capítulo, a uma tarefa urgente: é hora de voltar a pensar, afirma o título do referido capítulo.

O convite já aponta o caminho crítico trilhado por Fiori, um dos adversários mais agudos da política econômica implementada pelas duas gestões de Fernando Henrique Cardoso e mantida agora, em aspectos centrais, pelo governo Lula.

Por que é hora de voltar a pensar? Porque, desde 1994, escreve Fiori, boa parte da intelectualidade brasileira foi acometida por uma paralisia mental, seduzida por uma “leitura supostamente materialista e realista das transformações do capitalismo, ocorridas nestes últimos 25 anos”.

A paralisia mental, mencionada por Fiori, diz respeito ao consenso criado em torno do Plano Real, consenso este que garantiu a reeleição de Fernando Henrique Cardoso em 1998.

Quatro anos depois, a continuada estagnação da economia brasileira provocou uma fratura nesse consenso, abrindo o caminho para a vitória de Lula nas eleições de 2002.

Mas, para a perplexidade de muitos que votaram no candidato do PT apostando em uma mudança de rumos no país, as linhas centrais da política macroeconômica do período FHC foram mantidas, mostrando que a força política dos fatores que engendraram e alimentaram o Plano Real permanecem fortes.

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O consenso construído em torno do Plano Real continua ditando os rumos da economia nacional, fato evidenciado em vários balanços dos dez anos publicados na mídia brasileira.

O jornal Zero Hora, por exemplo, em um editorial intitulado Dez anos de estabilidade (edição de 27.06.2004), defende as linhas gerais do plano dizendo que “o mérito do real foi o de eliminar a memória da inflação e provar que só há moeda forte com seriedade fiscal”.

O texto é representativo da posição adotada pela maioria da mídia brasileira em defesa das virtudes estabilizadoras do Plano Real. O editorial de ZH sustenta que “o principal aprendizado percebido pelos brasileiros nos últimos 10 anos foi o de que não há como mudar um quadro marcado por custo de vida em descontrole sem a adoção de medidas duras de austeridade capazes de definir um horizonte gradual de equilíbrio das contas governamentais”.

Admitindo que o preço pago pela estabilidade da inflação foi o elevado endividamento do país e a estagnação econômica, em função da alta taxa de juros que, entre outros fatores, alimentaram o Real, o texto defende e elogia a manutenção da política econômica de FHC, dizendo: “depois de ter suas bases mantidas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, começa finalmente a ser associado com crescimento econômico sustentável”. A frase identifica justamente um dos pontos centrais da polêmica suscitada pelo balanço de dez anos do Plano Real, a saber, a relação entre a política adotada para conter a inflação e a sua capacidade (ou não) de produzir um ciclo de crescimento sustentável.

A arquitetura do Plano Real

Essa polêmica atravessa qualquer balanço sobre os dez anos do Plano Real, e suas raízes remontam à sua própria formulação. Lançado no dia 1° de julho de 1994, sua preparação começou há cerca de sete meses antes.

Em 7 de dezembro de 1993, o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, anunciou as diretrizes gerais do novo plano econômico. Uma das mais importantes era a criação da Unidade Real de Valor (URV), um indexador diário para a economia com o objetivo de equilibrar os preços e a inflação.

Em uma data futura, a URV seria transformada na nova moeda, que substituiria o cruzeiro real.

No dia 28 de fevereiro de 1994, o então presidente Itamar Franco assinou a Medida Provisória 432, instituindo a URV e o Real. No dia 1° de março, os salários foram convertidos em URV pela média do seu valor nos quatro meses anteriores. A última etapa de implementação do plano iniciou no dia 9 de maio, quando Itamar Franco anunciou que a nova moeda entraria em vigor no dia 1° de julho.

Segundo seus idealizadores, o plano visava a conter a inflação e estabilizar a economia sem o congelamento de preços e salários, opção tentada anteriormente no Plano Cruzado.

De fato, a inflação era um problema grave. Entre 1990 e 1994, os preços subiram em média 1.100% por ano.

Em linhas gerais, o plano consistia em conter o déficit público, acelerando o processo de privatização de empresas estatais, iniciado pelo ex-presidente Fernando Collor; pretendia também atrair investimentos externos, controlar a demanda por meio da elevação de juros e da abertura comercial, pressionando os preços para baixo. Com a economia do país aberta ao grande mercado comercial mundial, a ideia era estimular a competitividade dos produtos nacionais. Esses foram os objetivos anunciados em 1994 e implementados durante um período que se estende até hoje.

Inflação contida a um preço alto

Sob o governo Fernando Henrique, a inflação recuou para uma média de 9% ao ano. Mas o custo dessa vitória foi alto para o país. A taxa de desemprego passou de 4,3%, em 1995, para 7,7%, em 2002. O Produto Interno Bruto (PIB) cresceu em torno de 2,5% ao ano, percentual não muito distante daquele registrado durante a chamada “década perdida”, nos anos 1980. Além disso, a renda dos 20% mais ricos continuou 30 vezes maior do que a dos 20% mais pobres.

Esses números mostram que, se por um lado, o Plano Real foi bem-sucedido no combate à inflação, por outro, provocou a estagnação da economia, o aumento do desemprego e da desigualdade social. Não obteve êxito também no controle da dívida pública, que passou de 30% de toda a produção econômica do país, em 1995, para cerca de 60% no final de 2002. A renda per capita aumentou menos de 1% no mesmo período, segundo dados oficiais.

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) analisou o comportamento dos principais indicadores socioeconômicos do país durante os 10 anos do Plano Real.

O estudo do Dieese reforça o ponto de vista segundo o qual a estabilidade produzida pelo plano teve um alto custo para a capacidade produtiva do país. Nos dois primeiro anos, assinala o levantamento, foram observados resultados bastante positivos em várias áreas: drástica redução da inflação, aceleração da atividade industrial com redução de desemprego, crescimento da renda média dos trabalhadores, principalmente após a elevação do salário mínimo, em maio de 1995, através de um aumento real superior a 22%.

Mas as boas notícias verificadas em 1994 e 1995 não duraram muito. A lua de mel do Plano Real com a sociedade brasileira foi bruscamente interrompida por sucessivas crises mundiais que repercutiram no país sob a forma de fuga de capitais. Em 1995, a crise mexicana; em 1997, a crise asiática que atingiu Tailândia, Coréia, Indonésia e Hong Kong; e, em agosto de 1998, a crise russa. A cada uma dessas crises, destaca a análise do Dieese, o governo brasileiro promoveu uma elevação drástica da taxa de juros, tentando manter os investimentos estrangeiros no país, a política de sobrevalorização do real e conter a fuga de reservas internacionais. Essas medidas tiveram repercussões negativas sobre a atividade econômica nacional, ocasionando um progressivo aumento do desemprego, conforme os indicadores citados anteriormente.

Esse quadro fez com que o governo FHC articulasse um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), visando a impedir os efeitos desastrosos de novos ataques especulativos. Esse acordo, nota ainda o Dieese, não impediu o colapso da política cambial. Em janeiro de 1999, logo após a reeleição de FHC, o real sofreu uma maxidesvalorização, extinguindo a chamada “âncora cambial” do Plano Real. Essa “âncora”, financiada com capital externo, que era abundante no início do plano, manteve uma paridade artificial entre o real e o dólar. Foi o fim da “era de ouro” do 1 real = 1 dólar. Esse ponto consiste em um dos principais elementos de crítica ao governo Fernando Henrique, que teria mantido artificialmente essa paridade, quando isso não era mais possível, apenas para garantir sua reeleição. A partir daí, iniciou-se a construção de uma nova âncora, baseada em uma política monetária orientada por metas inflacionárias, taxa de câmbio flutuante e um forte ajuste fiscal, modelo que vigora até hoje.

Em defesa do Real

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Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

As opiniões ácidas de Palast certamente não são compartilhadas pelos defensores do plano. Em um seminário promovido pela Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul (FEE) sobre os dez anos do Plano Real, o ex-presidente do Banco Central no governo FHC, Gustavo Franco, defendeu o plano como o programa de estabilização mais bem sucedido da história do Brasil.

“Ou bem tratávamos da infecção (a inflação), ou o programa não traria resultados”, resumiu Franco.

Para ele, o problema central da economia brasileira era e continua sendo uma situação fiscal frágil e delicada. Segundo Gustavo Franco, o país tem ambições inconsistentes com o que a sociedade está disposta a pagar em tributos. “Isso gera déficits fiscais insustentáveis, pelo fato de as obrigações do Estado serem muito maiores do que hoje é a nossa carga tributária”, acrescentou o ex-presidente do BC.

Gustavo Franco acredita que a solução dos problemas econômicos do país passa pela austeridade fiscal. Na sua avaliação, até a criação da Lei de Responsabilidade Fiscal (que impede o setor público de gastar mais do que arrecada), a transparência da questão fiscal era um dos problemas centrais do país.

“Muitos esqueletos (dívidas públicas) permaneciam no armário. Vivíamos em um mundo de inflação elevada, recusando o medicamento tradicional para esse problema, o ataque ao déficit público”, defendeu.

Também convidado pela FEE, o economista João Sayad, ex-ministro do Planejamento do governo Sarney, deixou claro de saída suas divergências com a análise anterior.

“Eu e Gustavo Franco temos pontos de vista extremamente afastados”, sintetizou.

Para Sayad, o Plano Real teve como mérito indiscutível o controle da inflação, mas errou a manter de modo artificial, por um longo tempo, o sistema da paridade cambial. O seu grande problema, observou, é que dependida da entrada maciça de capitais. Quando esses capitais deixaram o país, o plano começou a fazer água. Sayad identificou outro ponto de divergência com Gustavo Franco no tema do déficit público.

“Apesar da geração permanente de superávits primários, a dívida passou de 30 para 42% do PIB. Os esqueletos de que ele fala são leves e pequenos, mas, se as taxas de juros são altas, eles se tornam defuntos pesados de carregar. A política monetária é responsável por juros altos e sonha que o Banco Central vai produzir superávits constantes. O problema desse circuito é que a dívida do país não pára de crescer”, sustentou.

Ao comentar a natureza dessas divergências, Sayad deu um conselho ao público que lotou o auditório da FEE: “Todos os economistas são carregados de ideologia, o que recomenda uma certa desconfiança em qualquer debate com eles”. Se a advertência de Sayad é pertinente e os problemas levantados no balanço dos dez anos do Plano Real também, então o convite de José Luís Fiori adquire renovado valor: é hora de voltar a pensar.

“Não existem milagres”

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Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

Considerado um dos mais importantes jornalistas investigativos da atualidade, o norte-americano Greg Palast, em seu livro A melhor democracia que o dinheiro pode comprar (Francis, 2004), descreveu do seguinte modo o episódio da maxidesvalorização do real:

“Em outubro de 1998, o presidente nominal do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, foi reeleito para o cargo por um único motivo: tinha estabilizado o valor da moeda brasileira e, portanto, contido a inflação. Na verdade, não tinha. O real brasileiro estava ridiculamente supervalorizado. Mas, com a aproximação das eleições, sua taxa de câmbio contra o dólar simplesmente desafiava a gravidade. Esse milagre levou Cardoso à linha de chegada com 54% dos votos. Mas não existem milagres. Quinze dias depois da posse de FHC, o real despencou e morreu. Seis meses depois da eleição, ele tinha aproximadamente a metade do valor que possuía no dia da eleição. A inflação estava aumentando e a economia implodindo. A taxa de aprovação de Cardoso, que se revelou um incompetente e uma farsa, caiu para 23% do eleitorado. Tarde demais. Ele já havia colocado a presidência no bolso.”

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