OPINIÃO

Relativizando o injustificável

Publicado em 17 de março de 2004

Quando eu era guri e escutava falarem sobre a Segunda Guerra, tomava aquilo por coisa das mais antigas, sem compreender que constrangimento ainda pudesse causar. Na verdade, escapara por reles década e meia de ser contemporâneo do Holocausto, mas essa percepção mais ampla, histórica, do tempo só o decorrer dele próprio – e a sua crescente escassez – proporciona. Assim, hoje, ao pensar no golpe de 64, custo a crer que já se vão 40 anos, tão mais próximo parece. E, por outro lado, suspeito que a gurizada de agora o situe entre o Império Romano e o período neolítico.

Afinal, que interesse genuíno, orgânico, nesse assunto podem encontrar os nascidos com a queda do muro de Berlim? Que implicações ele tem em suas vidas presentes, que contas teriam a ajustar com a juventude de seus avós? É justo supor que, afora os que se encaminham para um estudo acadêmico (e arqueológico) da história recente do país, os demais avistem no impeachment do Collor o limite suportável de investigação sobre o passado e o marco fundador republicano no Brasil. Para mais além, apenas um emaranhado nebuloso de planos cruzados, diretas-já e generais em série impresso nos livros escolares. Que bom se eu estiver errado. Caso contrário, cabe perguntar a quem de fato pertence esse desinteresse.

De muitas maneiras, o golpe de 64 é uma ruptura ainda reluzente na vida brasileira. Como prólogo do longo espetáculo da ditadura, a partir dele se motivam e se estruturam profundamente mazelas nacionais sempre apontadas com repugnância, da violência urbana à subserviência cultural, da desigualdade econômica à corrupção política. Que se assista, não raro, na voz de hoje enfáticos paladinos da ética, a defesa de teses “ponderadas” sobre o período, relativizando o injustificável, é dizer também da matéria básica sobre a qual se assentou o golpe e toda a ditadura militar, e da capacidade humana de suprimir a realidade e reinventar o passado de forma lenta, segura e gradual, a seu bel-pavor.

Castello Branco era um homem refinado e envergonhado de sua posição, nos ensina hoje Elio Gaspari. Imagino que também reivindique tais atributos para si próprio, tal como poderia fazê-lo um torturador com um alicate na mão poucos anos adiante no caminho aberto por Castello, que, obviamente, não inventou o golpe sozinho num dia de pescaria. Mas, a partir de dado momento da história, quando fica flagrante que nos havíamos tornado uma nação policiada por psicóticos, já não se avistam vestígios de nenhum pai da criança. Fica a impressão de que toda a sociedade brasileira, refinada e envergonhada, passa a exigir (corajosamente?) que o monstro seja encerrado e que não se fale mais no assunto. A se crer nas idas e vindas do tempo e nos esqueletos do Holocausto que ainda hoje despencam do armário, convém refinar uma reflexão para não se envergonhar ainda mais. Para o caso, digamos, de que a vitória da esperança sobre o medo tenha um prazo de validade a expirar, e de que os nossos netos passem a se perguntar, afinal de contas, de onde é que tanto medo vem.

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