Tudo começou em 1989 com um chilique do costureiro italiano Valentino, quando o McDonald’s instalou-se no andar debaixo do prédio de seu ateliê, na Piazza di Spagna, no centro de Roma. O cheiro de gordura de big macs e batatas fritas preparados na cozinha da loja de fast-food grudou nas roupas modeladas para cobrir o corpo de celebridades, causando a ira do criador de uma das grifes mais famosas do planeta. O jornalista Carlo Petrini deu conteúdo político à indignação de Valentino para fundar o Slow Food, movimento que prega o preparo caprichado dos pratos e a valorização das tradições da culinária regional e que está presente em mais de 45 países, contando com cerca de 70 mil adeptos. Acima de tudo, defende o prazer de sentar-se à mesa e degustar com calma o sabor de cada refeição – em suma, cultua o requinte do paladar.
Na contramão da comida ligeira
O símbolo da Slow Food International Association (www.slowfood.com) – sediada na Itália – é um caracol. Os núcleos locais da entidade são chamados convivia (plural de convívio, em latim), reunindo os associados para eventos como degustações, cursos de culinária, palestras ou simples encontros sociais. O movimento coloca entre seus objetivos proteger agricultores que trabalham com produtos naturais, sem usar venenos químicos na lavoura, além de desenvolver programas de educação do paladar para adultos e crianças. Para preservar a produção agro-alimentar artesanal e impedir a extinção de salames, queijos, vegetais comestíveis, cereais, chocolates e frutas de origem natural, criou o projeto Arca do Gosto, disponibilizando assistência técnica e recursos para pequenos produtores em todo o mundo.
“O esforço é para salvaguardar a tradição da culinária de cada país, região ou cidade”, explica a consultora gastronômica carioca Margarida Nogueira, que introduziu o Slow Food no Brasil, em 1999, após uma viagem à região do Piemonte, na Itália, onde conheceu Petrini, o fundador do movimento. “É o que chamo de sincronicidade. Hospedada em uma pousada, perguntei onde poderia encontrar a diretoria do Slow Food. Responderam que, por acaso, Petrini e seus companheiros estavam jantando naquele instante com o dono do estabelecimento”, conta ela. De volta ao Brasil, Margarida fundou o primeiro convivium no país durante jantar no restaurante Mistura Fina, no Rio de Janeiro. Ela explica que os convivia representam o elo entre os associados de uma região e a sede internacional, favorecendo a união das pessoas com interesse comum de preservar a herança culinária e os prazeres materiais que se opõem à crescente correria do mundo contemporâneo.
O prazer é a tônica do movimento
Na verdade, o que era para ser uma trincheira gastronômica contra o fast-food se transformou em movimento filosófico e comportamental de combate ao ritmo frenético do estilo de vida urbano. Para os adeptos do Slow Food, existe uma conexão entre comida, saúde e cultura. “Não por acaso, os povos tradicionais, que vivem em aldeias distantes do McDonald’s e do processo de americanização que tomou conta do mundo, acabam sendo os mais saudáveis”, diz a professora de História da Antigüidade, Heloísa Liberalli Belotto (mãe do músico Toni Belotto, dos Titãs), que lecionou na USP e hoje está aposentada. Heloísa Mader, prima da atriz Malu Mader (mulher de Belotto), é a líder do Slow Food em São Paulo. Consultora de hotéis e restaurantes, Heloísa afirma que, atualmente, o movimento define-se pela defesa da biodiversidade.
Mas, se o Slow Food prega a preservação da biodiversidade, de que forma ele se diferencia dos demais movimentos ecológicos? “É uma iniciativa ambientalista, sem dúvida, mas está centrada no prazer de desfrutar o sabor da comida. Este é o charme”, diz a arquiteta gaúcha Marília Portugal, que integra o movimento no Estado. Acrescenta que o Slow Food se distingue também dos movimentos naturalistas da década de 70, à medida que não exclui – e até incentiva – o hábito de comer carne. Para falar a verdade, a arquiteta passa longe dos restaurantes vegetarianos. “Apesar de saudável, a comida é um horror. Não tem sabor.” Em resumo, o Slow Food é um movimento hedonista, que alia a defesa da natureza à filosofia do prazer.
No Brasil, o Slow Food chegou a contar com quase 80 associados, em 1999. Algumas razões contribuíram para a redução do número – atualmente, tem cerca de 50. Entre elas, a crise do câmbio, que jogou nas alturas o valor da anuidade, que é de US$ 60 para a modalidade básica e de US$ 120 para a refinada. “Não é de modo algum um movimento popular”, admite Marília. O associado básico tem direito a receber uma carteirinha e a revista Slow, editada em italiano, inglês, francês, espanhol e alemão. Não há versão em português, o que dificulta a difusão das idéias no país. Quem pagar o dobro ganha maior número de publicações, incluindo a Slow Wine, especializada em vinhos, além de um broche com o símbolo do caracol. “Na Europa, os associados participam de convênios que dão direito a descontos em restaurantes credenciados, o que não ocorre no Brasil”, explica Marília.
A cores e sabores dos pratos regionais brasileiros
No Rio Grande do Sul, o Slow Food chegou a arregimentar 20 pessoas, sob a liderança do médico sanitarista Jorge Ossanai. Com a mudança de Ossanai para Washington, nos Estados Unidos, o grupo foi praticamente desativado. “Reconheço que, em Porto Alegre, o movimento está devagar demais, quase parando”, diz a arquiteta Marília. Para ela, falta ao Slow Food brasileiro a pesquisa minuciosa das raízes da gastronomia desenvolvida na Europa. Marília acredita que poderíamos imitar os europeus pesquisando as origens de nossos alimentos, como mandioca e frutas silvestres. “Por que não incentivar a produção de sorvete ou cachaça de pitanga?”, indaga.
Exceção à regra, a psicanalista carioca Daisy Justus pesquisa o comportamento alimentar do brasileiro. Segundo ela, nossa culinária tem forte influência dos portugueses, que trouxeram sal, açúcar, ovo, azeite e hortaliças, além da melancolia da saudade da terra natal. Por outro lado, os africanos contribuíram com temperos fortes e o espírito de alegria e sedução, como se espalhassem boas gargalhadas na cozinha. “O indígena, mais taciturno e arredio, nos deixou o assado de caças”, afirma Daisy, lembrando que as imigrações européias, a partir do século 19, deram novos temperos à comida brasileira. Citando o antropólogo Roberto da Matta, diz que a preferência nacional pelo cozido é fruto da mistura de raças, cores e sabores. “É o arroz com o feijão e a farinha que unem tudo isso. É o comer embolado.”
Galinha caipira e feijão honesto
Alguns restaurantes do país tentam seguir a receita do Slow Food, como o Massimo, em São Paulo, dos irmãos italianos Massimo e Venâncio Ferrari. “Os prazeres sensuais precisam ser gozados. O frenesi do dia a dia está levando ao empobrecimento da vida”, diz Venâncio. Na capital paulista, outro baluarte é o Le Tan Tan, onde se realizaram vários convivia. Em Porto Alegre, o Empório Carlos Gomes bem que tentou seguir os preceitos do movimento, mas não houve boa receptividade da clientela, basicamente formada por executivos de bancos. “A proposta é comer devagar, mas o pessoal está condicionado à cultura de almoçar ligeiro e ir logo embora”, constata uma das sócias, Janile Pilau (ex-miss Rio Grande do Sul na década de 80).
Dividido em “ilhas” (de café, bebidas, saladas, comida japonesa, massas e carnes), o Empório Carlos Gomes tem peculiaridades que o aproximam da filosofia Slow Food. Não há separação física entre a cozinha e as mesas, o que permite ao cliente interagir com o cozinheiro, sugerindo molhos específicos ou escolhendo a carne mais ou menos passada, conforme o gosto pessoal. “Alguns são bem exigentes”, diz o cozinheiro Everton Duarte Canto. Para inspirar a clientela, o restaurante – que serve 200 refeições diárias – planeja instalar uma cadeira de massagem para que os executivos possam relaxar ombros e coluna vertebral antes do almoço. “Quem sabe assim eles comam mais devagar”, observa a proprietária.
Já no interior de Minas Gerais, um exemplo de restaurante onde se come devagar e com prazer é o Viradas do Largo, em Tiradentes. Especializado em comida mineira, serve alimentos colhidos na horta particular da dona, Beth Beltrão, ou comprados diretamente de produtores que abominam o uso de pesticidas ou adubos químicos. “Hoje em dia, a maioria dos criadores abate o frango após 30 dias. Nossa galinha caipira leva seis meses para ir para a panela. Nós aqui não temos pressa”, diz Beth. Indagada acerca da fama da comida mineira de obrigar o vivente a tirar uma sesta após se empanturrar no almoço, ela garante: “Nosso feijão é honesto. Não tem perigo de passar mal.”
Foto: Divulgação
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As cidades do bem viver
O Slow Food ganhou desdobramento com a rede internacional Slow Cities, ou cidades do bem viver, como é chamada no Brasil. Para evitar poluição sonora ou visual, boa parte delas proíbe a instalação de alarmes de carro e combate a proliferação de outdoors e letreiros em neon. Em Bra – sede do movimento, com 27 mil habitantes –, na Itália, mercearias, açougues e fruteiras estão proibidos por decreto municipal de abrirem as portas às quintas-feiras. O objetivo é dar tempo aos proprietários para que possam resolver problemas particulares. Nem por isso eles perdem direito ao descanso dominical.
Em Greve-in-Chanti, também na Itália, os órgãos municipais funcionam aos sábados pela manhã, para permitir aos habitantes que trabalham em tempo integral resolverem questões burocráticas. Em compensação, para não sobrecarregar os servidores públicos, já que ninguém é de ferro, as repartições fecham nas tardes de quinta-feira. As regras do Slow Cities incluem deixar o centro das cidades livre de automóveis, principalmente se o local for histórico e tiver prédios tombados. Os moradores de edificações antigas ganham auxílio financeiro das prefeituras para mantê-los bem conservados.
Foto: René Cabrales
Foto: René Cabrales
Atualmente, existem cerca de 30 municípios na Itália que ganharam o certificado do Slow Cities. A rede começa a se espalhar por vários países da Europa, marcando presença também na Ásia (Croácia) e na América do Norte (Canadá). Na América Latina, Antônio Prado – com 12,9 mil habitantes, na serra gaúcha – foi o primeiro município a assinar uma carta de intenções para se engajar no movimento, em 19 de novembro de 2001. A seguir, foi a vez de Tiradentes (MG). Penedo (AL) está pleiteando uma vaga.
Para o coordenador técnico da Secretaria de Turismo de Antônio Prado, Paulo Barp, o termo de compromisso é um incentivo para que o município preserve os prédios históricos – a cidade tem o maior acervo arquitetônico em madeira da colonização italiana do país –, além de atrair maior número de visitantes. “Após a adesão ao movimento, criamos a trilha ecológica do arroio, um passeio didático pela mata, onde as espécies vegetais são identificadas por placas. Uma vez por semana, realizamos feira ecológica.” Para ganhar em definitivo o título de Slow City, entretanto, Antônio Prado deveria passar por uma auditoria do conselho internacional do movimento, o que até agora não ocorreu.
Comer rápido é ansiedade
Os médicos concordam que se alimentar com calma para degustar o sabor das refeições proporciona prazer e satisfação. Mas, do ponto de vista científico, não há evidências de que comer depressa traga prejuízos à saúde. Essa é a constatação de Carlos Franciscone, chefe do serviço de gastroenterologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Esclarece que comer com rapidez é, na verdade, manifestação de distúrbios do sistema nervoso (principalmente ansiedade) e que estes sim podem causar algum desconforto após as refeições.
“No máximo, a pessoa pode ter sintomas como gases ou estômago inchado, por causa da ansiedade. Ainda assim, o quadro jamais evoluirá para enfermidades graves, como úlcera ou câncer”, diz Franciscone. Se alguém pensa que é conveniente pedir uma segunda opinião médica, ouvirá Júlio Pereira Lima, presidente da Sociedade Gaúcha de Gastroenterologia e professor-adjunto da Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, repetir a observação do colega. “A idéia de que comer depressa provoca doenças é um tabu de nossa cultura, sem fundamento algum.”
Com ou sem respaldo científico, o crescimento do Slow Food, especialmente na Europa, não é a única espinha trancada na garganta do McDonald’s, ícone da cultura fast-food. No último trimestre de 2002, a rede amargou o primeiro prejuízo de sua história de 48 anos, com perda de US$ 343 milhões. Terá sido uma maldição lançada pelo costureiro Valentino na Piazza di Spagna? O fato é que, no final do ano passado, as ações do McDonald’s valiam 60% a menos que três anos antes e até hoje não se recuperaram do tombo. Além disso, nos últimos dois anos, cerca de 700 lojas da marca foram fechadas no mundo. Para os adeptos do Slow Food, a crise do fast-food significa a aurora de novos tempos.
Slow Food promete ajudar
Em 29 de abril deste ano, a Slow Food International Association assinou protocolo de intenções com o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, em que se compromete a ajudar o governo brasileiro a recuperar o conhecimento de técnicas tradicionais de produção agrícola e criação de animais. Além disso, promete criar as condições para a comercialização dos alimentos orgânicos no mercado internacional. Isso já ocorre na Europa, onde o Slow Food dá subsídio e agencia a venda produtos de pequenas propriedades a restaurantes sofisticados de metrópoles como Nova York. O acordo foi assinado pelo ministro José Graziano da Silva e o vice-presidente da associação, o italiano Roberto Burdese.
Não faltam pequenos agricultores gaúchos comprometidos com a produção ecológica, que estariam em condições de receber recursos e apoio tecnológico. Há dois anos, eram 3.370 famílias que desenvolviam culturas a partir de técnicas naturais – a Emater/RS não tem dados atualizados. Sabe-se que, no Estado, 60% dos fruticultores adotam práticas ecológicas, número que corresponde a 30% da área assistida pela Emater em pomares. Também aderiram 19% dos produtores de arroz, feijão, milho e trigo e 34% dos plantadores de alho, batata, cebola e tomate. “O consumo de alimentos orgânicos tem crescido 25% ao ano no país, representando um mercado de US$ 30 milhões”, diz o diretor-presidente da Embrapa, Clayton Campanhola.
A Ecocitrus (com 70 famílias de produtores dos vales do Caí e Taquari e de Santa Cruz do Sul, que só trabalham com lavouras orgânicas) tem motivos para comemorar. Neste ano, registrou aumento de 50% a 60% da plantação ecológica de bergamota, laranja e limão, comercializando 1,5 mil toneladas de frutas in natura e 400 toneladas de frutas para suco. Os produtos são vendidos para redes de supermercados como Zaffari (RS) e Angeloni (SC), espalhando-se também no pequeno varejo de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná, de acordo com o presidente Pedro Schneider. Segundo ele, a Ecocitrus tem possibilidade de exportar suco para a Europa, mas prefere destinar a produção para o mercado nacional. “É uma questão ética. Nosso povo merece produto limpo.”
Na região de Três de Maio, noroeste do Estado, entretanto, a Cotrimaio – com 9,5 mil associados em 17 municípios – luta para manter a produção de soja orgânica em área de 1 mil hectares. Há dois anos, a Cotrimaio planejava expandir a plantação com a adesão de 1 mil agricultores em área de 5 mil hectares. “Esperávamos crescer muito mais. O que atrapalha a soja orgânica é o valor elevado da cotação da soja convencional na Bolsa de Chicago”, explica o presidente da cooperativa, Antônio Wüsch.
Em função da quebra da safra norte-americana a cotação da soja convencional subiu de US$ 11 para US$ 15 em poucos meses. Com isso, praticamente igualou o valor da remuneração da soja orgânica no mercado internacional, que chega a US$ 16. “Como o produto orgânico dá muito mais trabalho, fica difícil convencer o agricultor a aderir ao projeto ecológico, uma vez que o ganho vai ser reduzido”, diz Wüsch. Na soja orgânica, o tempo entre o plantio e a colheita é 40% maior. Além disso, trabalha-se com perda de 30% da produção. Com o refluxo da soja ecológica, a Cotrimaio aderiu até mesmo aos transgênicos. “Não tem como fugir. Os caras lá fora compram, o que vou fazer?”, pergunta Wüsch.