Se o tempo não pára, como já dizia Cazuza, não param também as mudanças de comportamento de uma sociedade que busca a todo instante reinterpretar a si mesma. Alteram-se e transformam-se igualmente alguns conceitos criados por essa mesma sociedade. Da mesma forma, mudam as imagens e os motivos mitológicos criados pelo inconsciente coletivo através dos arquétipos, ou estruturas psíquicas, termos criados pelo psiquiatra suíço Gustav Carl Jung no século passado. Sendo assim, o arquétipo do professor sobre-humano, mestre dono da verdade e do conhecimento e que deve servir de exemplo para seus alunos, já não faz parte do imaginário das pessoas.
Quando profissionais são retratados na mídia, seja em uma novela, em um filme ou em uma reportagem como seres humanos e, por isso, falíveis, surgem descontentamentos por parte de algumas pessoas. “A mídia, muitas vezes, desenvolve um ponto, elevado a um certo exagero, gerando desconforto no espectador, principalmente se este desenvolve a mesma atividade profissional. Isto favorece julgamentos moralistas? Favorece. Mas os julgamentos e as críticas são próprias do raciocínio humano. Estaremos sempre num contínuo processo de idealizações/desidealizações, mesmo em estado adulto”, diz a psicóloga clínica e psicanalista Heloisa Cunha Tonetto. “O importante é estarmos atentos e mantermos a posição crítica, para não nos deixarmos invadir por uma história que não é”, ressalta.
Tonetto lembra que o professor desenvolve um papel de extrema importância na vida de uma criança e que é natural que ela transfira para a escola, o modelo familiar que é o seu conhecido e recaia no professor suas expectativas e ideais semelhantes àquele desenvolvido em seu ambiente familiar. “Idealizações são normais e profícuas na formação da identidade. Mas também é necessário que haja uma desidealização em algum momento deste processo. Os modelos, os heróis vão descendo do pedestal e vão tornando-se pessoas comuns. Pai e mãe são pessoas comuns enquanto dotados de habilidades, qualidades e fraquezas. Assim também são os professores”, diz Heloísa, que é também psicanalista da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, é docente e vice-coordenadora do Instituto de Estudos em Psicanálise de Porto Alegre.
Humanos, demasiado humanos
Há quem defenda que é preciso ter e preservar os ídolos para a construção de um arquétipo profissional. A pergunta que se faz então é se esses ídolos devem, necessariamente, ser sobre-humanos, verdadeiros modelos de perfeição. Na última teledramaturgia do experiente Manoel Carlos, Mulheres Apaixonadas, que encerrou no início de outubro, professoras foram retratadas de forma desmistificada. Uma era alcoolista, e a outra tinha um relacionamento com um aluno mais jovem. Se, por um lado, o folhetim incomodou alguns telespectadores, por outro, mostrou o profissional de ensino como uma pessoa comum.
“ O professor, antes de ser um professor, é um ser humano”, lembra Esmar Sobral Cunha, professora de Português dos terceiros anos do ensino médio da Escola Florinda Tubino, de Porto Alegre. “O professor é uma pessoa suscetível a qualquer deslize. O importante é ele desempenhar seu trabalho com responsabilidade e dedicação”, afirma ela que é professora há mais de 30 anos.
Anabel Gerber, professora da educação básica e superior da Fundação Machado de Assis e Escola da Paz, em Santa Rosa, lembra que uma professora é, antes de tudo, mulher e é possível, por exemplo, que possa ter um interesse por um aluno. “A questão pode ser ética dependendo da idade do aluno”, garante ela e ressalta que em várias escolas há colegas alcoolistas. “Muitas vezes acabam se tornando alcoolistas por não saberem lidar com o ‘stress’ e com as frustações”, acredita ela, que trabalha com arte-terapia num hospital onde algumas das pacientes são professoras alcoolistas.
“ Somos pessoas. É isso que tem que ficar bem claro. Dentro da sala de aula somos profissionais pedagogicamente, didaticamente. Fora da escola, temos uma vida, família e nossos sentimentos”, concorda Priscilla Pitta, professora de Ensino Fundamental na escola Marista Irmão Weibert. Ela, que, enquanto aluna, já namorou um professor na faculdade, acha que talvez seja um falso moralismo, ou até hipocrisia, não querer constatar a realidade de um professor.
Acreditar que o professor é um ser superior e dono da verdade é uma concepção ultrapassada, afirma a professora Adria Stefani, que leciona na Faculdade Portoalegrense (Fapa). “O professor é uma pessoa comum. Preconceitos e falso moralismo fazem com que pessoas se incomodem quando vêem esses profissionais retratados de forma comum. Enquanto professora, tenho que ajudar o meu aluno a construir o seu conhecimento, a analisar, a criticar e a ter suas próprias opiniões”.
Ficção televisiva e pessoas genéricas
Sai Mulheres Apaixonadas e entra Celebridades, fazendo barulho com seus muitos flashes nas casas de pelo menos 100 milhões de brasileiros. Mas, se os dramas dos personagens da novela de Manoel Carlos já não atraem mais os olhares dos telespectadores das oito, os temas abordados pelo autor ainda geram debates para muita gente. Cabe à telenovela o papel de discutir, por exemplo, o desarmamento? É válido, mesmo que espetacularizado o debate de questões muitas vezes ignoradas pelos telespectadores? Ouvimos as opiniões da professora Dra. Maria Helena Weber, do curso de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), autora do livro Comunicação e Espetáculos da Política e do professor de Comunicação da Pontifícia Universidade Católica (PUC), João Guilherme Barone, professor de cinema e televisão da Pontifícia Universidade Católica (PUC), coordenador das Oficinas Experimentais de Cinema e diretor e roteirista de cinema e televisão.
Extra Classe – A telenovela tem poder de “desmoralizar” uma categoria?
Maria Helena Weber – Não tem o poder de desmoralizar uma categoria porque a sociedade tem suas entidades e instituições legais, mas ela pode – e o faz – desqualificar uma categoria, uma etnia, uma preferência sexual, etc. A mídia tem o poder de desqualificar, de ridicularizar e, também, de implementar boas discussões sobre relações amorosas, familiares e institucionais. Mulheres Apaixonadas fez isto em todos os níveis e de modo padronizado.
João Guilherme Barone – Uma telenovela poderá desmoralizar uma categoria se esta categoria já estiver desmoralizada. Será apenas uma confirmação. O público não é idiota como se pensava nos anos 60 ou como entendiam os frankfurtianos. É capaz de entender a ficção e sabe muito bem quando está sendo enganado. Geralmente, acaba se manifestando e reagindo.
EC – Questões polêmicas como o desarmamento devem ser discutidas pela imprensa ou pela novela? O que vocês acham dessa inversão entre ficção e realidade?
Weber – Se a mídia discute desarmamento, violência, segurança em todos os seus espaços, isto é ótimo, mas o problema está quando se tem a impressão de que tudo pode ser resolvido pela mídia. Ao exacerbar as suas emoções, o espectador pode ter a sensação de que sua missão está cumprida. A sua passeata se torna aquela do vídeo. Mas o discernimento deste espectador tem de ser levado em conta, também. Então, precisamos acreditar que a inversão favorece a discussão no plano real. Mas, do ponto de vista mercadológico, ela é perversa.
Barone – Não acredito que haja uma inversão entre ficção e realidade, no que toca à discussão das grandes questões da sociedade brasileira. A imprensa não é e não deve ser o único fórum para as discussões. Ao utilizar elementos da “realidade”, a telenovela cumpre também uma função de informar e aproximar a sociedade dos seus problemas. A violência urbana, os preconceitos, a discriminação, a exclusão social, as opções sexuais, a corrupção, a crise da saúde, da segurança, da educação, o meio-ambiente, etc…são questões que fazem parte da vida brasileira (e do mundo) e não podem ser ignoradas pelos autores que trabalham com o grande público.
EC – Ao retratar a realidade daquelas professoras (uma com problema de alcoolismo e a outra com uma relação afetiva com um aluno mais jovem), a telenovela generalizou todo o comportamento de toda uma categoria?
Weber – Sempre a ficção televisiva trabalha com a generalização, com gosto médio e impactos, ora visuais, ora morais. Os professores da escola apresentada em Mulheres Apaixonadas me pareceu o ponto mais inverossímil e perverso. Uma escola perfeita de classe A transformada no principal lugar de circulação de conflitos familiares, amorosos e financeiros da telenovela. Só isto vale uma tese! Assim é o último capítulo quando, no cenário da escola, tudo é resolvido. Fico imaginando como uma escola um pouco mais ortodoxa veria a declaração da professora (casada) sobre seu grande amor vivido com um aluno (morto com seu marido) e do qual carrega um filho. Todos aplaudem e todos choram. Também neste momento, a intimidade das duas meninas apaixonadas que havia sido preservada de modo cínico, durante toda a trama, “adquire veracidade”, pois uma – vestida de Romeu e como morto – recebe o beijo da sua amada, a então Julieta. Foram apresentadas muitas questões para serem debatidas e aprofundadas, numa seqüência de estereótipos, generalizações e desqualificações (da sexualidade, da educação, da pobreza, etc) e todas sustentadas entre o folhetim e a realidade. Será?
Barone – A telenovela trabalha com personagens que não podem ser demasiado aprofundados. Este formato não suporta abordagens profundas. Generalizar é uma interpretação do que o personagem faz no contexto da obra. Se uma professora que é um personagem é alcoólatra, não significa que toda a categoria é assim. E o público sabe disso. Se um personagem de um político corrupto faz parte da trama, não quer dizer que todos os políticos são corruptos. Eu acredito que é importante assegurar o direito à livre expressão artística. O Brasil lutou muito para restabelecer a democracia. Acho que é preciso, ao mesmo tempo, refletir sobre a responsabilidade das emissoras de televisão e os conteúdos que são produzidos e exibidos. Acho que muito ainda falta para que a TV aberta no Brasil possa se orgulhar plenamente da sua programação. No geral, entretanto, considero que as telenovelas cumprem uma importante missão “educativa” para milhões de pessoas que talvez nem estivessem preocupadas com os problemas que estão sendo abordados, ainda que de uma forma um tanto espetacularizada.