Reforma do trabalho em movimento
Até o início de 2004, o governo deverá encaminhar ao Congresso Nacional o projeto de reforma do movimento sindical do país. A seguir, será enviada a proposta de alteração da legislação que regulamenta as relações entre capital e trabalho. No centro do debate, estão algumas indagações. Como a reforma sindical e trabalhista poderá colaborar para a ampliação do número de postos de trabalho, inserindo no mercado jovens e trabalhadores com mais de 40 anos? De que maneira ajudará a reduzir a informalidade e a rotatividade da mão de obra? Como adequar as leis trabalhistas aos novos modos de produção capitalista, determinados pela globalização econômica e pelas novas tecnologias? Algumas dessas questões foram discutidas em debate realizado no final de outubro por iniciativa da OAB/RS em evento que reuniu representantes de diversos setores.
Foto: René Cabrales
A reforma está sendo discutida no Fórum Nacional do Trabalho, em Brasília, com representantes do governo, trabalhadores e empregadores. Ao mesmo tempo, reuniões nas delegacias regionais do Trabalho dão suporte ao debate nacional. A idéia do presidente Luís Inácio Lula da Silva é incorporar ao projeto do Executivo todos os itens de consenso do Fórum. Naqueles em que não houver acordo tomará a iniciativa de propor aos parlamentares as medidas que considerar adequadas.
O ministro Gélson de Azevedo, do Tribunal Superior do Trabalho – que participou de debate sobre o tema promovido pela OAB/RS, no final de outubro –, aponta a ordem de prioridades como a primeira virtude da reforma de Lula. “Primeiro, é necessário alterar a estrutura sindical para que tenhamos entidades fortes e autênticas, não só de representação, mas também de representatividade. Depois, é preciso encontrar fórmulas para agilizar contratações e dispensas, sem perda de direitos, o que reconheço não ser uma tarefa fácil.”
O secretário-geral da CUT/RS, Cássio Bessa, entende que a reforma é necessária. “Desacomoda, sim, mas as mudanças requeridas são fruto da mobilização dos trabalhadores. Queremos que o estado mude, para que fique mais democrático e público”. Para ele, se as reformas da Previdência Social e tributária tivessem adotado igual procedimento de discussão nas bases, os resultados teriam sido mais promissores. “Somos parceiros da mudança”, acrescenta.
Uns estão mais nus do que os outros
Contudo, representantes da própria base do governo Lula tentam puxar o freio. É o caso do deputado Tarcísio Zimmermann (PT-RS), que integra a Comissão do Trabalho na Câmara. “Essa reforma vai mexer com a materialidade da vida das pessoas. Por que a pressa? O mundo não vai acabar em 2004.” Sugere a adoção de pequenas alterações pontuais na legislação para corrigir distorções, sem que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) sofra modificações grandiosas. A juíza trabalhista aposentada Magda Barros Biavaschi, pesquisadora da Unicamp, também recomenda cautela. Ela preocupa-se com as pressões das classes empresariais para que a Justiça do Trabalho deixe de exercer poder normativo nas negociações entre patrões e empregados. “A intervenção do estado é fundamental. Nascemos todos nus, mas uns estão mais nus do que outros. Não há igualdade.”
No movimento sindical, a reforma também encontra resistências. O ex-presidente do Sindicato dos Comerciários de Porto Alegre, Luís Carlos da Silva Barbosa, critica a idéia de que, como fênix, as entidades renasceriam das cinzas após o modelo atual ser jogado na lata do lixo. “Não podemos fazer tábua rasa de um movimento sindical que elegeu um presidente da República. Em que outro país isso foi possível?” Eloy de Leon, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag/RS), é outra voz indignada. “O governo admite flexibilizar, por exemplo, os direitos do trabalhador das pequenas empresas. Ué, o filho dele toma menos leite?”
Fotos: René Cabrales
Saturno V e a calculadora do camelô
Entretanto, poucos discordam que o modelo sindical e a legislação criados na década de 40 não atendem mais à realidade do país. “Getúlio Vargas era gênio. Botou os sindicatos no bolso ao criar uma estrutura sindical autoritária e corporativa, mas que respondia àquele momento histórico”, diz o advogado trabalhista Antônio Escosteguy Castro. Com a revolução da microeletrônica e das tecnologias digitais (a chamada terceira revolução industrial do capitalismo, desde o século XIX), o modo de produção capitalista se alterou drasticamente. “Hoje, uma calculadora vendida por camelô, no centro de Porto Alegre, tem maior capacidade de cálculo que os computadores da nave Saturno V, que pousou na Lua em 1969”, diz o advogado.
A nova realidade da economia mundial começou a se desenhar no início dos anos 80. Na metade da década, havia cerca de 400 empresas multinacionais no planeta. Dez anos depois, o número havia subido para 40 mil. A concorrência internacional determina a necessidade de redução de custos das empresas. Existem, portanto, razões estruturais do modo de produção capitalista para a criação de um novo cenário nas relações entre capital e trabalho, de acordo com Escosteguy. “A lógica neoliberal, que caracteriza a globalização, é reduzir custos das empresas e também da manutenção do estado e dos serviços públicos. Este é o motivo do ataque aos direitos dos trabalhadores”, concorda o advogado e assessor sindical Rogério Coelho.
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Mais produção e menos empregos
Estudo da empresa Alliance Capital Management mostrou que, entre 1995 e 2002, 22 milhões de empregos industriais foram suprimidos em 20 países. Até mesmo na China houve perda de 16 milhões de postos. O fenômeno foi acompanhado da elevação de 30% da produção, confirmando a tendência de aumento da produtividade com base em ganhos tecnológicos. A cada ano, 25 milhões de empregos são eliminados no continente latino-americano. Nos Estados Unidos, a produção industrial subiu 77% desde 1979, apesar da redução de 22% das vagas de trabalho. Na agricultura, houve aumento de 96% da produção, com queda de 31% no nível de emprego.
Pesquisa recente do IBGE constatou que o setor de serviços em São Paulo registrou aumento de 13% do número de demissões, com queda de 12% da renda média. Houve elevação de 2% da quantidade de pessoas que trabalham, o que significa que o setor está em expansão, mas terceirizado. As empresas demitiram os empregados e os recontrataram com salário inferior. Segundo a Comissão do Trabalho da Câmara Federal, 41 milhões de brasileiros encontram-se hoje na economia informal, o que representa 54,6% do total de trabalhadores do país. Na América Latina, o percentual é de 55%, comprovando o fenômeno de caráter global.
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Casa de ferreiro, espeto de pau
Para o procurador do Ministério Público do Trabalho, Alexandre Correa da Cruz, a terceirização constitui uma “forma moderna de escravidão”, cujo requinte máximo é atingido com a contratação de falsas cooperativas, cujos trabalhadores sequer têm direito a férias ou repouso semanal remunerado. Contudo, a febre da terceirização atinge até os órgãos oficiais. “No prédio do Ministério Público do Trabalho, na capital gaúcha, a portaria é terceirizada. No Fórum da Justiça do Trabalho, faxineiros e ascensoristas também são terceirizados. É casa de ferreiro e espeto de pau”, condena Bernardete Kurtz, ex-presidente da Associação Gaúcha dos Advogados Trabalhistas (Agetra).
O presidente do Sindicato dos Advogados Trabalhistas/RS, Emílio Papaléo Zin, contrapõe que é preciso não confundir “precarização de direitos com viabilização de empreendimentos”. Ele acredita que a reforma trabalhista não pode ser desvinculada da reforma tributária, lembrando que, hoje, manter um trabalhador com vínculo empregatício acarreta acréscimo de 30% sobre a folha de pagamento somente com os tributos previdenciários. Papaléo critica ainda o “cinismo” da CLT, que protege executivos com salários de R$ 200 mil mensais. “Quando deixam a companhia, exigem incorporação de premiações, com reflexo em férias, 13o, etc.”