CULTURA

Mídia e ficção: o show não pode parar

Marco Aurélio Weissheimer / Publicado em 29 de julho de 2003

Em tese, a função primordial da mídia seria a de informar o público sobre o que ocorre a sua volta. Se possível, com o máximo de isenção. No entanto, pelo que o mundo assistiu, ouviu e leu, essa função informativa parece estar, cada vez mais, sendo substituída por uma outra, a do entretenimento e do espetáculo. Nessa lógica, a notícia e a informação são progressivamente assimiladas à condição de mercadoria. E no império do efêmero que caracteriza a moderna sociedade de consumo, há poucas coisas mais atraentes e lucrativas do que a transformação da notícia em espetáculo. Um dos resultados mais imediatos desse fenômeno é o esfacelamento das fronteiras entre realidade e ficção.

O tema não é novo é já foi tratado de forma exemplar pelo escritor francês Guy Debord, em seus livros “A sociedade do espetáculo” (1967), “O declínio e a queda da economia espetacular mercantil” e “Comentários sobre a sociedade do espetáculo” (1988). Debord é considerado o inaugurador de uma reflexão sistemática sobre o conceito de “espetáculo” e sobre seus efeitos na sociedade contemporânea. Segundo ele, o espetáculo é a expressão de uma situação histórica na qual a mercadoria passou a comandar todas as dimensões da vida social. A mídia, obviamente, não é uma exceção à regra. Para Debord, mídia, espetáculo, mercadoria e capitalismo estão umbilicalmente associados. O espetáculo, diz ainda o autor, como tendência a fazer ver o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como sentido privilegiado da pessoa. Entretanto, adverte, o espetáculo não é meramente um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens. Em outras palavras, quanto mais deixamos de ter um contato direto com o mundo, quanto mais deixamos de vivenciar experiências diretamente, mais estamos à mercê do bombardeio de imagens e representações que nos atinge diariamente pelos mais variados meios de comunicação. E, nesse bombardeio, realidade e ficção despencam sobre nossas cabeças sem que possamos saber ao certo o que está nos atingindo. Se é assim, como podemos então, de modo minimamente bem informado, formar opiniões sobre o que acontece a nossa volta?

Cobertura cinematográfica

Uma velha máxima do jornalismo diz que a primeira vítima de uma guerra é a verdade. A recente guerra no Iraque forneceu fartos exemplos para alimentar a fama dessa máxima. Transformada em espetáculo transmitido pelas redes de televisão para todo o mundo, essa guerra mostrou, como poucas vezes se viu, o quão tênue pode ser a diferença entre ficção e realidade. O caso da recruta Jessica Lynch foi emblemático, tornando-se um ícone midiático. Seu resgate de um hospital iraquiano pelas forças norte-americanas foi divulgado em todo o mundo como um grande momento patriótico. Terminada a guerra, o resgate hollywoodiano revelou-se uma fraude. Os médicos que trataram de Jessica no hospital disseram a jornalistas da rede de televisão inglesa BBC que não havia do que resgatá-la: ela estava em tratamento, e os guerrilheiros iraquianos que a haviam capturado já tinham fugido. Lynch, de 19 anos, foi capturada quando sua companhia se perdeu nos arredores da cidade de Nasiriya e acabou sendo emboscada. Nove de seus colegas foram mortos e ela, levada ao hospital local, que no momento estava repleto de fedayins, os guerrilheiros leais a Saddam Hussein. Oito dias depois forças americanas invadiram o hospital, com uma câmera de vídeo para gravar os eventos. O vídeo divulgado em todo o mundo mostrou soldados dizendo estar sob forte fogo, com tiros vindo de fora e de dentro do prédio, e “resgatando” Jessica.

Alegou-se então que ela estava com feridas de faca e tiros, e que havia sido esbofeteada no leito do hospital, e interrogada. Os médicos iraquianos disseram ter dado à recruta o melhor tratamento possível nas circunstâncias. Ela recebeu atenção do único especialista disponível. “Eu a examinei, vi que tinha um braço quebrado, uma coxa quebrada e um tornozelo deslocado”, disse o médico Harith a-Houssona. “Não houve tiroteio, nenhuma bala em seu corpo, nenhuma facada – só um acidente de trânsito. “Ficamos surpresos. Por que isso? Não havia militares, não havia soldados no hospital”, disse Anmar Uday, outro médico iraquiano. “Foi como um filme de Hollywood. Eles gritavam ‘go, go, go’ (vai, vai, vai), e usaram tiros de festim. Fizeram um show – um filme de ação como Sylvester Stallone ou Jackie Chan”. Dias antes do suposto ataque, os médicos tinham combinado devolver Jessica numa ambulância, mas, quando ela se aproximou do acampamento americano, os soldados abriram fogo. Tudo para garantir o espetáculo que seria gravado dias depois.

Diversão e realidade

A progressiva dissolução das fronteiras entre ficção e realidade não afeta apenas a mídia que pretende transmitir informação ao público. Paradoxalmente, nos últimos anos, os produtos de comunicação destinados a “divertir” o público passaram a perseguir o máximo de verossimilhança com a vida real. A explosão dos “realitys show”, como o Big Brother Brasil, representa o ápice desse processo iniciado pelas telenovelas e pelas minisséries. Esse fenômeno é tema do livro “Mídia e política no Brasil: jornalismo e ficção”, de Alzira Alves de Abreu, Fernando Lattman-Weltman e Mônica Almeida Kornis (Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2003), que faz uma análise da trajetória de mudanças na mídia brasileira nas últimas três décadas. Em um capítulo sobre a teledramaturgia (o campo próprio das novelas e minisséries), Mônica Kornis analisa, entre outras coisas, a linguagem realista e a preocupação com a verossimilhança que marca a produção ficcional da Rede Globo desde o início dos anos 70.

A autora procura mostrar como os produtos ficcionais da Rede Globo sempre estiveram preocupados em expressar uma determinada conjuntura histórica, resgatando muitas vezes um momento do passado para falar do presente. Kornis analisa a minissérie “Anos Dourados”, escrita por Gilberto Braga e exibida pela Rede Globo em 1986, procurando mostrar como se realizou a operação de, logo após o fim da ditadura militar, retomar uma conjuntura identificada com a ordem democrática. O governo de Juscelino Kubitschek – associado às idéias de esperança, otimismo e espírito moderno – é ligado com a retomada democrática expressa pela então chamada “Nova República”. O universo do entretenimento e da ficção, então é utilizado a serviço do debate político sobre a “transição democrática”. Daí a preocupação em usar uma linguagem realista e verossímil. Nesse caso, ao contrário do verificado na guerra do Iraque, a ficção é que é travestida de realidade.

A partir de 1982, a Rede Globo inicia uma nova etapa de produções ficcionais, através das “Séries Brasileiras”, direcionadas especificamente para temas atuais e históricos da sociedade brasileira. Essas minisséries apresentam-se como um produto mais sofisticado que as novelas e destinado a um público “menos popular”, os chamados “formadores de opinião”. O objetivo, segundo Mônica Kornis, é “contar” a história brasileira, assim como Hollywood sempre procurou “contar” a história norte-americana. O que parece haver em comum entre essa estratégia (que reveste produtos ficcionais com uma linguagem realista) e aquela adotada por grande parcela da mídia na guerra do Iraque (em que a informação é deformada por artifícios próprios da ficção) é que o objetivo, nos dois casos, é vender um determinado produto ao público. Ou seja, a informação transmitida pela mídia não procura exatamente “informar” e a ficção transmitida pela novela ou minissérie não procura exatamente “divertir” ou “educar”. A facilidade com que se mistura realidade e ficção parece obedecer sempre a uma mesma lógica: a do espetáculo e da mercadoria. Se o antídoto contra isso é uma sólida educação desde a infância, como propõe Umberto Eco, vale a pena lembrar, como reforço, uma passagem de Guy Debord em sua obra “Panegírico”: “Quem pode escrever a verdade senão aqueles que a sentiram? O autor das mais belas Memórias escritas no século XVII (Montaigne), que não escapou da crítica de ter falado de sua conduta sem manter as aparências da mais fria objetividade, fizera a respeito dela essa oportuna observação, segundo a qual apenas são verdadeiras as histórias escritas por homens sinceros o suficiente para contar a verdade a respeito de si mesmos”.

Assim, seguindo os passos de Eco e Debord, poderíamos dizer que uma boa maneira de tentar identificar a fronteira entre realidade e ficção nos produtos da mídia (sejam eles notícias, filmes ou telenovelas) é olhar para seus autores, para sua história, e ver se há honestidade e transparência em suas intenções. É claro que, para poder olhar corretamente, é preciso estar no mundo e aprender com a nossa própria experiência cotidiana. Talvez essa seja a educação de que fala Eco, aquela que forma uma “uma casca comportamental espessa e dura demais” para ser iludida pela lógica do espetáculo.

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