GERAL

Previdência no fundo do poço

Paulo César Teixeira / Publicado em 5 de abril de 2003

O déficit da Previdência Social é um poço sem fundo. Economicamente inviável, o sistema previdenciário abriu um rombo de R$ 70,8 bilhões nas contas da União, estados e municípios, em 2002. A previsão é de que, este ano, ultrapasse R$ 80 bilhões. A cratera cresce assustadoramente – em 1994, era quatro vezes menor. Socialmente injusto, o modelo atual paga benefícios irrisórios de até dois salários mínimos a 77,9% dos aposentados do setor privado. Só 0,1% dos contribuintes do INSS ganha acima de dez mínimos. Como estancar a sangria dos cofres da Previdência e, ao mesmo tempo, ampliar os benefícios da maior parte da população?

Este é o dilema do presidente Luís Inácio Lula da Silva, que depara-se com a urgência de implantar reformas estruturais no país, capazes de desatar os nós que paralisam as ações do estado. A primeira delas é a da Previdência Social – depois, será a vez da Tributária e da Trabalhista –, que deverá ser encaminhada ao Congresso Nacional até o final de abril. Na campanha eleitoral, Lula propôs a adoção do sistema previdenciário universal, ou seja, a unificação do Regime Geral de Previdência Social, que atende aos trabalhadores do setor privado, e dos Regimes Próprios de União, estados e municípios.

Tudo indica que desistiu da idéia. O governo avalia que os custos da conversão seriam inviáveis. A União teria uma despesa adicional de R$ 19 bilhões nos próximos 23 anos (R$ 2,1 bilhões já em 2004). Estados e municípios não ficariam longe disso. Por três décadas, os gastos equivaleriam a 7% do PIB, afirmam os técnicos do Ministério da Previdência Social. Na reunião com os governadores, na Granja do Torto, no final de fevereiro, Lula praticamente descartou a hipótese do regime único.

Mudanças em estudo tiram direitos de servidores

A alternativa que o governo estuda envolve três mudanças essenciais na aposentadoria dos servidores públicos. Entre elas, está a elevação da idade mínima de 53 para 60 anos (homens) e de 48 para 55 (mulheres). Ao mesmo tempo, o prazo de carência seria duplicado – em vez de dez, no mínimo 20 anos de serviço; ao invés de cinco, pelo menos dez anos no cargo. Da mesma forma, os benefícios passariam a respeitar um teto, como ocorre com os aposentados da iniciativa privada. Hoje, este valor é de R$ 1.561,56. Para os servidor público, entretanto, o governo fixaria um teto equivalente ao último salário, descontando 11% a título de contribuição previdenciária. Na prática, a aposentadoria seria igual ao valor líquido do contracheque. Com as medidas, o governo espera economizar, em apenas um ano, a quantia de R$ 1,7 bilhão. Este volume de recursos equivale aos gastos com o Fome Zero.

Antes de votar a reforma, o governo quer submeter ao Congresso o Projeto de Lei no 9, enviado por FHC, no final de 1999, que define as regras da previdência complementar. Com a fixação do teto para os benefícios do setor público, os funcionários que desejarem aposentadorias mais elevadas poderiam recorrer a fundos abertos ou fechados, públicos ou privados. “Infelizmente, a experiência passada do país com os fundos de pensão privados não é muito recomendável. Alguns faliram e deixaram muita gente na mão”, lembra o presidente da CUT, João Felício. À espera do novo mercado, a previdência privada movimenta hoje R$ 192 bilhões no país. Embaladas pelo debate acerca da reforma, algumas empresas, como a Bradesco Previdência, aumentaram em 70% o faturamento nos três primeiros meses de 2003.

Todas as reformas estão sendo debatidas no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, que se constitui num órgão consultivo do presidente. “Pessoalmente, sou a favor de uma previdência estruturalmente pública, dotada de regime complementar público e privado, de modo a oferecer opção ao trabalhador. Além disso, é necessário cortar os abusos da legislação atual, que permite aposentadorias de até R$ 40 mil no setor público”, afirma o ministro Tarso Genro, Chefe da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Social.

Para debater a Previdência no Conselho, foram chamados cerca de 60 representantes da sociedade civil, entre eles, o presidente da CUT, João Felício, empresários como Jorge Gerdau Johanpetter e Eduardo Eugênio (presidente da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro), além de personalidades como a atriz Lucélia Santos e o médico Dráuzio Varella. “O objetivo é discutir a reforma antes que se torne fato consumado. Entretanto, não temos a expectativa de alcançar um grande consenso, uma vez que a representação empresarial é numericamente superior à dos trabalhadores”, reclama Juçara Dutra, presidente do Cpers (Centro dos Professores do Estado do RS).

Sistema está à beira da falência

Num ponto, há consenso: a reforma é inadiável porque o atual modelo está praticamente falido. A questão é saber se Lula terá maioria no Congresso para aprovar a mudança, que encontra resistências dentro do próprio PT, no PC do B e no PDT. “Por ironia, o governo poderá contar com os votos de PSDB, PMDB e PFL no plenário. Se dependesse da oposição, a reforma teria sido aprovada ontem”, diz o deputado Evilásio Farias (PSB-SP), da comissão especial de parlamentares que analisa o tema. Uma das vozes descontentes é da deputada federal Luciana Genro (PT-RS): “Esta é mais uma tentativa de demonizar o funcionalismo público, que perdeu 47 direitos nos oito anos do governo de Fernando Henrique Cardoso.” Para o advogado trabalhista Jorge Santos Buchabqui, o governo cometeu um erro grave ao agendar a reforma da Previdência antes do ajuste tributário. Com isso, reduziu a amplitude do debate à questão financeira, abrindo caminho para a eliminação de importantes conquistas do funcionalismo público.

Cabe a pergunta: por que os direitos dos servidores geram polêmica? Dos 22 milhões de aposentados brasileiros, só 3 milhões são oriundos do serviço público. Entretanto, o déficit da Previdência com o funcionalismo é três vezes maior – R$ 54 bilhões contra R$ 17 bilhões. Por que é assim? Enquanto o benefício médio dos trabalhadores do setor privado é de R$ R$ 389,14, a aposentadoria média dos servidores é de R$ 2,8 mil. Para os civis do Poder Executivo da União, chega a R$ 2,2 mil. Os militares ganham R$ 4,26 mil. No Ministério Público, o valor sobe para R$ 12,57 mil. No Banco Central, R$ 7 mil. No Congresso Nacional, R$ 7,9 mil e, no Judiciário, R$ 8 mil.

A despesa com pessoal inativo e pensionistas compromete 15,1% da receita líquida da União e 23,4%, no caso dos estados. “O sistema é extremamente generoso e benevolente para os servidores públicos. Os Regimes Próprios atendem 1,8% da população ao custo de 4,2% do PIB. Obviamente, são inviáveis”, afirma o professor José Márcio Camargo, do Departamento de Economia da PUC-RJ. Ele calcula que, mantendo as regras atuais, a Previdência teria que descontar 30% e não 11% do salário do funcionalismo, a título de contribuição, para tornar-se auto-sustentável.

A questão é polêmica: um estudo elaborado pelo auditor fiscal do INSS/MG, Márcio Soares Pereira, compara os benefícios pagos aos aposentados dos setores público e privado e conclui que, “por incrível que possa parecer, a grande vantagem é para o segurado do INSS”. Pereira leva em conta as aposentadorias dos servidores de baixa renda, que constituem a maioria do quadro estatal. Como eles não tiveram reajuste salarial desde o Plano Real, ao contrário do que ocorreu no INSS, os benefícios previdenciários chegam a ser 100% inferiores. O auditor toma como exemplo um aposentado do serviço público e outro do RGPS que ganhavam R$ 500 em 1995. Hoje, o primeiro recebe pouco mais do que esse valor, se é que obteve algum aumento. Já o segurado do INSS estaria ganhando R$ 998,92, graças aos reajustes conquistados no período.

Conta kafkiana diminui renda dos aposentados

Entretanto, para os inativos do setor privado, o modelo atual também significa confisco. Convém lembrar que, no RGPS, a aposentadoria é calculada pela média de 80% das maiores contribuições feitas desde julho de 1994. As contribuições são atualizadas por critérios determinados pelo governo, que quase nunca correspondem à inflação real do período. Estabelecido o benefício, o INSS aplica o fator previdenciário, que é um redutor expresso em valores percentuais que considera três variáveis: tempo de contribuição e idade do trabalhador divididos pela expectativa de vida que ele tinha ao se aposentar.

Todos os trabalhadores perdem nesta conta kafkiana, mas alguns perdem mais – os que começaram a lhar mais cedo ou se aposentaram com menor tempo de serviço. No caso dos professores de educação básica, o fator previdenciário é calculado com o acréscimo virtual no tempo de contribuição de mais dez (mulher) ou cinco (homem) anos. Com isso, os 25 anos de trabalho de uma professora são considerados 35. “Mas, a medida não corrige a perda, já que as demais variáveis – idade e expectativa de vida – continuam a influir desfavoravelmente no cálculo da aposentadoria”, alerta a diretora da Fepesp (Federação dos Professores do Estado de São Paulo) e do Sinpro-SP, Sílvia Barbara. Na prática, para ter direito a 100% do benefício, a professora de educação básica terá que trabalhar entre 32 e 35 anos e ter, pelo menos, 50 anos de idade.

Um elemento agravante é que o fator previdenciário não é um índice variável, que muda todo o ano, conforme a tabela de expectativa de vida do IBGE – “uma verdadeira caixa preta, que iguala pobres e ricos e altera a estrutura etária da população rapidamente”, segundo a diretora do Sinpro-SP. “Se o objetivo da reforma é fazer justiça social e não atender aos chiliques do mercado e aos interesses das seguradoras privadas, não resta dúvida sobre o destino que deva ser dado ao fator previdenciário, um estelionato de primeira grandeza cometido contra os trabalhadores”, afirma.

Previdência diminui em 11,3% a pobreza

O debate avança com um olho no caixa e outro no papel social desempenhado pela Previdência. Diversos segmentos da sociedade contribuem por meio de regras diferenciadas graças às chamadas renúncias previdenciárias. No ano passado, por exemplo, as entidades filantrópicas deixaram de injetar R$ 2 bilhões nos cofres do sistema, enquanto as micro e pequenas empresas foram isentadas em R$ 1,5 bilhão. A idéia é promover o bem-estar social e fomentar o desenvolvimento da economia. Outra função social da Previdência é transferir renda da cidade para o campo. Enquanto os trabalhadores urbanos contribuem com R$ 68,7 bilhões para o INSS e ganham R$ 70,95 bilhões em benefícios, os do campo alimentam o caixa com R$ 2,3 bilhões e recebem R$ 17,07 bilhões. O saldo negativo de R$ 14,8 bilhões do meio rural corresponde a 86,9% da necessidade de financiamento total do RGPS.

Por outro lado, o sistema previdenciário é um fator importante de redução da miséria no país. Em 1999, 54 milhões de brasileiros (34% da população) viviam abaixo da linha de pobreza. Não fossem as aposentadorias e pensões, o percentual subiria para 45,3%. Significa que 18,1 milhões de pessoas escaparam de viver em condições subumanas. Ao mesmo tempo, o grau de miséria entre os idosos triplicaria sem a Previdência, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). As mudanças que serão implantadas não podem suprimir essas conquistas. Conjugar a viabilidade econômica e a função social do modelo previdenciário é o grande desafio da primeira das reformas estruturais do governo Lula.

Medalha da cueca vermelha aumenta benefício dos militares

Uma pedra no sapato de Lula é o setor militar, que conta com algumas regalias no atual sistema. Entre elas, está a pensão integral e vitalícia para as filhas do servidor, datada da Guerra do Paraguai. Desde 2000, foi extinta para quem está entrando nas Forças Armadas, mas preservada para os antigos militares. Com 30 anos na ativa, a promoção de patente é automática na hora de entrar para a reserva. Por outro lado, medalhas também garantem um posto acima, como a da Intentona Comunista, de 1935, conhecida na caserna como “cueca vermelha”. Para o brigadeiro Mauro Gandra, ex-ministro da Aeronáutica de FHC, a natureza da atividade profissional justifica o tratamento diferenciado. “Uma ordem superior implica risco de vida, que é indissociável da atividade bélica. Além disso, não podemos exercer ofício paralelo, organizar sindicatos ou realizar greves.”

Caso sejam após aprovadas no Congresso, as novas regras poderão ser bloqueadas pela Justiça? Embora critique as mudanças, o advogado trabalhista Buchabqui considera improvável esta hipótese. “Muda a Constituição, cai o direito adquirido. Caso contrário, a escravidão não teria acabado até hoje. Mas é bom lembrar que, se o governo escapar do embaraço jurídico, não poderá fugir do desgaste político.” Contudo, a juíza aposentada Sheila Bierrenbach (que pertence à Justiça Federal Militar do RJ) prevê cinco anos de turbulências, com uma intensa corrida ao Poder Judiciário de servidores que se sentirem lesados. “A reforma não pode ferir o direito constitucional. Afinal, vivemos num estado democrático, que não deve ser violado.”

Professora da Escola da Magistratura do RJ, ela alerta que a máquina do estado pode sofrer sérios prejuízos com a avalanche de pedidos de aposentadoria dos que pressentirem que estão prestes a perder vantagens. Uma solução à vista é a adoção de regras transitórias, que estabeleçam direitos gradativos para os funcionários conforme o tempo de serviço. Os que já completaram o período mínimo seguiriam as normas antigas. Haveria uma faixa intermediária com um pé na velha e outro na nova Previdência. Por fim, os que entraram há pouco tempo no estado teriam poucos benefícios do antigo sistema.

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