GERAL

Olhares além do cartão postal: A Bahia dos santos humanos

Paulo Gaiger / Publicado em 28 de novembro de 2002

“Mas capturando a mutação das mentiras
escravos da Indochina, baianos de cartão postal
seu coração disse: não!
Ninguém mente no sonho onde tudo está nu
E menor que meu sonho, não posso ser”

(Da letra “Metal sobre Pedra”)
É noite, embora não muito tarde, mas é que aqui no agreste anoitece rapidamente, já perto das 17 horas. A lua e as centenas de estrelas que parecem se multiplicar a cada instante, começam a tomar seus lugares num céu que é parte da inspiração para a poesia nordestina, sem custo algum para a sensibilidade e para o tempo, este tempo quase mágico de espera e contemplação, de olhares aguados e gretados precocemente por um sofrimento humano atávico e intencional, de risos sem dentes por alegrias miúdas e passageiras que passam como a leve brisa, de crianças e jovens cegados por um futuro já em ruínas, a poesia dura como a caatinga, resignada e abençoada, que furtou o sonho destas gentes. Contrapõem-se na pintura desta paisagem a beleza da lua que me encanta e a tristeza do povo que me imobiliza. E se a lua finge iluminar a noite do sertão com a luz que não emana de si, no semi-árido, a tristeza contida, por detrás da retina e da pele destes pobres, revela a falsidade da alegria ensaiada no cartão postal. A Bahia não é a alegria nem o ritmo do Olodum de Salvador, embora os contenha para os turistas que a entendem como exótica e despretensiosa. A Bahia também são as estradas intransitáveis que não aparecem na TV; as multinacionais da rapinagem instaladas em seu interior a custo zero; um povo indigente semi-analfabeto finalizando o segundo grau para um sem porvir; o resíduo de um coronelismo anacrônico obstaculizando a liberdade, a emancipação e a utopia.

Mas as fotografias desvendam mais do que isto à medida que são reveladas, como o avesso da realidade oculta adentro do postal, como um quadro em variações cinzentas sem inspiração que é preciso perceber para além da moldura que o cerca: um contraste entre a bela e forte poesia retida no coração deste povo e a tradição autoritária e miserável das dependências que o submete. Ainda bem que se aprende a ver adiante e mais ao fundo do que se olha! Fiquei vinte e um dias em Nova Fátima, pequena cidade do interior baiano, a 220 quilômetros de São Salvador, do Pelourinho e das praias maravilhosas. Mais quinze universitários da Unisinos, estudantes de diversos cursos integraram o Programa Universidade Solidária, do qual fui o professor coordenador.

Nos relatos prévios ouvidos da comunidade em uma visita precursora, diversas lideranças fizeram um apelo para que, de algum modo, de crianças a idosos, pudesse ser resgatada a capacidade de sonhar e de viver, não exatamente como escrevo, mas como senti e li através das suas palavras e dos seus olhos. Este sonho que nos embala, nos motiva e que dá sentido à vida parece ter sido usurpado e substituído por uma relação de dependência e fé em Deus e nas políticas públicas, da caridade às frentes de trabalho, que retiraram desta gente e de sua humanidade a coragem das iniciativas e das rupturas.

É um povo sem sonhos porque a luta pela sobrevivência salta e percorre as vísceras, a pele e os semblantes numa animalização da condição humana, numa redução à sua mais trágica subordinação às leis da natureza. O que resta poderia ser caricatura ou fotos do Sebastião Salgado, mas não é! Cada dia que foi passando, em suas horas e minutos, desde as seis e meia da matina quando os primeiros do grupo levantavam para ir comprar o pão quente na padaria Harmonia e aguardávamos Ceci, que deveria chegar às sete horas para fazer o café, mas chegava não antes das oito, fomos descobrindo a riqueza deste povo, em suas pequenas coisas e gestos, naquilo onde o poder usurpador não chegou.

Em Nova Fátima existem inúmeras associações rurais, algo perto de vinte e poucas, uma cooperativa de mulheres, para a qual a Unisinos doou um computador, um sindicato entre tantas outras iniciativas civis, integradas e dirigidas por pessoas humildes e que intuem que por aí podem romper com os comportamentos anestesiados, com a inação que lhes foi imputada e com a alienação de sua capacidade emancipatória. Podem conquistar o tempo e o espaço para o desejo de construir coisas novas, como vimos na comunidade rural de São Francisco, quando um grupo de aproximadamente 25 jovens apostou numa experiência teatral e, em apenas seis encontros, montou a peça “Lamparina contra a filha do coronel”, apresentada na praça da sede e no encerramento do Unisol, emocionando a todos. Testemunhamos fenômenos fortes e tocantes nas vivências construídas, por exemplo, nas zonas rurais de Santo Antônio, Queijo, Sinuque e Alazão, às vezes, com centenas de pessoas, das mais diferentes idades, reunidas na praça da comunidade, isto é, embaixo do poste de luz, onde, através do jogo e do toque sensível, se repensava a vida, se furungava adentro das cicatrizes e da história, se revitalizava o olhar. Isto aconteceu com todos, nós e eles. É possível e provável que algumas das experiências protagonizadas e vivenciadas nestas três semanas possam ser cultivadas por este povo que lhes dará a direção que melhor entender. E é bem isso mesmo que a gente deseja e é por isso que mantém programas desta natureza.

Retornamos desta experiência profundamente tocados e mudados em nossa relação com o mundo e, cada um, consigo mesmo. Aprender não é fácil, embora seja simples. Parece, como bem escreve Saramago no romance Todos os Nomes, que é preciso dar uma grande volta para descobrir aquilo que nos está tão perto. A alegria da Bahia não é a do Olodum, mas a do povo de Nova Fátima que não aparece no cartão postal porque quer, algum dia, ser verdadeiramente livre.

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