Em sua recente passagem por Passo Fundo, para os Colóquios Nacional e Internacional de Educação Popular, no início de setembro, Carlos Rodrigues Brandão*, conversou com o Extra Classe e falou sobre seu novo livro A educação popular na escola cidadã (Ed. Vozes – 455 pgs.), que reúne um conjunto de estudos sobre o tema.
Brandão é considerado um dos representantes mais ativos e participantes dos tempos da recriação, no Brasil, da Educação Popular no começo dos anos sessenta, quando conheceu e tornou-se amigo pessoal de Paulo Freire. Segudo ele, inicialmente o livro se chamaria Lições do Sul, por tratar-se de experiências educacionais ocorridas no Rio Grande do Sul, principalmente. Porém, a editora achou que ficaria um título muito localizado para um livro de interesse nacional e foi apropriadamente modificado.
O livro trata das questões que, ao longo das quatro últimas décadas, animaram a discussão teórica, metodológica, política e prática da Educação Popular e são retomadas por Carlos Brandão e trazidas a uma oportuna atualidade. Nos nossos tempos, de uma educação dirigida aos interesses do mercado de bens e de serviços, o livro se contrapõe, propondo uma educação devotada à formação da pessoa cidadã, isto é, daquela que aprende na escola e fora dela para tornar-se algo mais do que um competente-competitivo produtor de recursos econômicos. “A educação muda as pessoas e as pessoas mudam o mundo”, diz. O trabalho também faz uma reflexão sobre o povo, o popular e o político. A educação tem a ver com os quatro “p”. Quem controla o poder político de uma sociedade, controla a sua educação formal e controla o poder sobre o povo. Faz uma bela recuperação da memória de Paulo Freire e finaliza o livro com uma reflexão ilustrada com os conceitos de Chardin, Maturana, Varela, Assmann e Arroyo. Leia o que o autor pensa sobre esses temas:
Extra Classe – Como é que num mundo onde tudo é tão episódico, o debate acerca da Educação Popular continua atual?
Brandão – Olha, são 42 anos de educação popular no Brasil, considerando-se o seu início, o começo da década de 60. Esse tema vê-se revivificado mesmo após a morte de Paulo Freire. Mas a questão fundamental é: O que é hoje uma educação popular emancipatória?
EC – E qual é a resposta para essa pergunta, professor?
Brandão – A resposta eu não tenho, infelizmente. Mas posso levantar alguns pontos fundamentais como: a vocação de uma educação suprapartidária ou apartidária, que não se subordine a um projeto dominante hegemônico; a experiência da educação como prática de resistência; a convicção de que a educação não lida com o ajustamento de pessoas ao mundo social estabelecido, mas lida com a criação de pessoas inconformadas, capazes de se lançar na tarefa de criarem seu próprio mundo social.
EC – O projeto dominante está ligado a um processo de mercantilização da educação em todo o mundo. Como a Educação Popular, nesses termos , pode sobreviver a isso e de que forma o senhor aborda esse tema tanto nos seus livros como em suas palestras?
Brandão – Há algum tempo, nós os herdeiros de Paulo Freire, que militamos pela educação popular desde os anos 60 nos colocávamos frente aos estados totalitários (com ditaduras no Brasil, Argentina e Chile) quando então este projeto era uma forma aguerrida de pensar uma experiência alternativa de fórum revolucionário contra todo um estado capitalista ditatorial. Hoje em dia, as coisas mudaram, mas não tanto. As ditaduras não são mais dos militares, mas das empresas. Talvez pese sobre nós uma ameaça internacional nessa nova ordem muito mais terrível, que é a ameaça deste poder que nem é globalizado e hegemônico, já é um poder imperial. Trata-se da construção de um Império de poder cuja sede é os EUA. Uma das traduções desta imperialização da educação dentro de um projeto de serviço direto ao capital é não apenas a privatização da educação. Países muito avançados possuem tanto escolas públicas, como escolas privadas, porém essas últimas, de fórum comunitário. Ou seja, elas estariam mais na construção de um terceiro setor, do que na vertente de um empresariado dominante da educação. A contrapelo disso, o que ocorre em todo o mundo é um processo que é pior do que a privatização (que é uma medida apenas intermediária), que é de mercantilização direta da educação.
EC – Que tipos de distorção essa visão cria?
Brandão – A educação deixa de ser vista como um direito, como consta na carta das nações unidas no artigo 26 (um direito humano primário) e passa a ser uma venda de serviços. Ou seja, não competirá mais ao Estado ou às comunidades autônomas, mas ao empresário competente e competitivo que tenha capital para investir na Educação como investe em qualquer ramo de negócio. Assim você vê declarações como a do dono do Objetivo e da Unip (Universidade Paulista) à Carta Capital, por exemplo, afirmando do alto de seu pensamento empresarial: “A educação é um negócio como outro qualquer”. Isso é absurdo.
EC – Diante de tal cenário, como fica o movimento de Educação Popular no Brasil e na América Latina ?
Brandão – Está vivo e de pé. E isto é o que importa. Resistimos, criamos alternativas. Procuramos nos unir mais ainda, como aconteceu recentemente no Colóquio de Educação Popular em Passo Fundo. Aparecemos frágeis diante do poderio do que nos ameaça. Mas somos multidão dos que resistem. É preciso crer em nós e no que podemos fazer e criar juntos. Há todo um projeto de comunidades, de economias, de modos de vida fundados na solidariedade e no horizonte de construção de sociedades socialistas, livres e amorosamente humanas e humanistas. A Educação Popular não é um projeto sonhador solto no tempo e no espaço. É um projeto utópico; realisticamente utópico e comprometido com a construção co-responsável e partilhada deste outro mundo possível. A utopia não é o irrealizável, ela é apenas o ainda não-realizado. A Educação Popular é o trabalho do educador que acredita nisto.