“Educação não é banana, nem automóvel.” A frase é do ex-reitor da Oppen University do Reino Unido, atual subdiretor para ensino superior da Unesco, John Daniel. Ela reflete a reação de espanto e horror de importantes educadores em todo o mundo, diante da proposta da Organização Mundial do Comércio (OMC) de enquadrar os serviços educacionais de nível superior como bens de serviço comercial, e não bens públicos, como são rotulados hoje. A diferença entre uma classificação e outra é igual à do dia para a noite. Se a mudança entrar em vigor, em janeiro de 2005, como prevê o calendário da OMC, a educação será incluída na mesa de negociações entre os países como qualquer outra mercadoria – banana, alfafa, avião, artigo esportivo etc.
Cabe a pergunta: quais são as conseqüências práticas? E o que muda para o sistema educacional brasileiro? Como bem de serviço comercial, a educação superior passaria a ser regulamentado por normas estabelecidas no âmbito da OMC e não mais por governos ou esferas judiciais dos estados nacionais. “É inadmissível transferir a responsabilidade de conduzir as políticas de educação para o mercado, que não tem compromisso com um ensino libertador e humanista”, adverte a reitora da UFMG, Ana Lúcia Gazzola. Ela teme o fim do ensino superior público e gratuito, a ausência de critérios para a criação de novas faculdades e a impossibilidade de fechamento de cursos sem qualidade, além da redução do mercado de trabalho dos professores por força da concorrência estrangeira.
A proposta da OMC está sendo alvo de críticas em todo o planeta. Algumas das mais representativas universidades da América do Norte e da Europa solicitaram a seus governos que não aceitem a medida. Elas se manifestaram através de entidades como a AUCC – que congrega 92 instituições do Canadá –, a EUA (em nome de 30 conferências nacionais de reitores e 537 universidades da Europa) e a CHEA, que reúne três mil escolas de ensino superior e 60 organismos de certificação dos Estados Unidos.
No Brasil, a controvérsia foi o tema central da III Reunião de Universidades Públicas Ibero-americanas, em Porto Alegre, em abril deste ano. Em 24 de maio, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) redigiu carta ao presidente Fernando Henrique Cardoso, onde considera fundamental a manifestação das autoridades brasileiras contra a intenção da OMC. “A inclusão da educação superior no livre comércio tem gerado grande preocupação aos dirigentes das instituições federais e a todos aqueles que consideram o ensino superior um instrumento para a formação de cidadãos críticos e comprometidos com o desenvolvimento da nação”, ressalta o documento.
Em junho, houve duas audiências públicas para discutir a questão – na UFMG e na Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados. O recesso parlamentar de julho e a campanha eleitoral esvaziaram o Parlamento, mas a deputada Esther Grossi (PT-RS), presidente da Comissão de Educação, promete retomar a pauta na III Conferência Nacional de Educação, Cultura e Desporto, em novembro.
Brasil pode concordar por omissão
A polêmica começou em abril de 1994, quando o Acordo Geral de Comércio de Serviços (GATT), que reúne 134 países, aprovou uma política progressiva de liberalização de serviços, incluindo 12 itens, entre eles, a educação de nível superior. A lista é ampla (leia quadro à pág. 6) e abarca praticamente todas as áreas hoje sob responsabilidade dos estados nacionais – um escritório de advocacia do Canadá interpretou que só ficariam fora do acordo as atividades policiais e das Forças Armadas. Em setembro de 1998, dois meses antes da Conferência Mundial sobre o Ensino Superior (Cemes), realizada em Paris, com a participação de mil delegados representando 180 países, a OMC divulgou documento afirmando que a educação também existe como “item de atribuição privada” e que, portanto, estava sujeita às regulamentações da entidade. A assertiva da OMC colidiu de frente com as conclusões da Cemes, que pregava a manutenção do ensino como bem público.
Em janeiro de 2000, em Doha, no Catar, a OMC pediu que os países formulassem ofertas de abertura de mercado. Os Estados Unidos saltaram na frente, em 18 de setembro daquele ano, solicitando o comprometimento dos outros membros da OMC com a política de liberação do setor e apresentando uma relação de obstáculos que deveriam ser suprimidos. Entre eles, a política de subvenção dos governos nacionais e as “onerosas” taxas de impostos cobradas sobre a remessa de lucros. Em 26 de junho de 2001, foi a vez de a Nova Zelândia propor a inclusão da educação superior no rol dos serviços. Logo depois, em 10 de outubro, a Austrália ratificou a proposta. Enfim, em 15 de março deste ano, o Japão meteu a colher na sopa com uma solução intermediária, que libera o setor ao mesmo tempo em que estabelece restrições, levando em conta diferenças culturais, o governo local e a qualidade do ensino.
Os demais países membros da OMC têm prazo até 31 de março de 2003 para responder se aceitam ou não as propostas apresentadas. Atenção para o detalhe: caso não se manifestem formalmente contrários às reformulações, ficará subentendido que concordam com elas, ainda que por omissão. Até agora, a posição oficial do Brasil é desconhecida. “Não há manifestação pública por parte do governo”, condena a deputada Iara Bernardi (PT-SP), que pretende convocar o ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer, para depor na Comissão de Educação da Câmara.
Risco à soberania
Os riscos da alteração proposta pela OMC à soberania dos países em desenvolvimento são imprevisíveis, como explica o brasileiro Marco Antônio Dias, que dirigiu a divisão de Educação Superior da Unesco durante 17 anos e hoje é assessor da Universidade das Nações Unidas, com sede em Paris. “Se o governo ou o Poder Judiciário impedirem um grupo estrangeiro de se estabelecer no Brasil, o assunto vai para um tribunal internacional e o país pode ficar sujeito a represálias de outros membros da OMC, sendo forçado a indenizar o grupo econômico que se sentiu lesado.”
Ficção futurista? Paranóia? Há quem entenda que estão fazendo tempestade em copo d’água. O coordenador da área de Filosofia do Centro Brasileiro de Pesquisa (Cebrap), José Arthur Gianotti, considera “ingênuas” as reações de indignação à proposta da OMC. “Meu argumento é simples: desde a gênese da educação formal, na Grécia Antiga, com os fundamentos de Platão, os sofistas já cobravam uma contrapartida por suas lições. O escândalo é fora de propósito, porque o ensino sempre foi mercadoria.”
O que está em jogo é o comércio de produtos ligados à educação superior, que movimenta US$ 30 bilhões por ano apenas entre os países ricos. O mercado explodiu com o desenvolvimento de novas formas de educação à distância e pela internet. O banco norte-americano Merril Lynch calculou o mercado mundial de conhecimento on line em US$ 9,4 bilhões em 2000. A projeção é que chegará a US$ 53 bilhões antes de 2003. Os Estados Unidos são os maiores exportadores, seguidos de Reino Unido, Austrália, Itália e Canadá. Para alguns países, como a Austrália, a educação é o terceiro item da carteira de exportações, atingindo a cifra de US$ 2 bilhões por ano. Este é o universo que conta para a OMC – a realidade do mercado.