Foto: René Cabrales
Foto: René Cabrales
Nesta entrevista concedida por e-mail direto de Jerusalém nos dias que sucederam a ofensiva israelense nos territórios palestinos, ela esmiuça os traumas físicos e psicológicos destas pessoas, as barreiras militares impedindo o acesso às escolas, a perda de esperança na vida, os atentados suicidas, enfim o cenário típico das guerras.
Marianne é membro da Pyalara (Associação dos Jovens Palestinos pela Liderança, Direitos e Ativação), escolhida pela Unicef como maior parceira estratégica na Palestina.
Extra Classe – Como é o seu trabalho na Pyalara?
Marianne Albina – Eu comecei há quatro anos, com o jornal jovem “The Youth Times”. Depois, me tornei gerente editorial da seção em língua inglesa do jornal e do escritório de relações públicas da entidade. Eu costumava ainda treinar os jovens que queriam seguir a carreira de jornalista: ajudava-os a escrever artigos e produzíamos, através da Pyalara, um programa jovem na televisão Palestina. Eu também atuei em workshops sobre democracia, jornalismo e valores de paz.
EC – Quais as principais preocupações dos jovens e crianças que procuram o Pyalara?
Marianne – Conheço muitas crianças que me confessam ter medo de ir para a escola, pois temem ser baleados. Como eu posso dizer para uma criança que ela não levará um tiro se lá no fundo eu sei que existem grandes chances de isso acontecer? Como devemos nos comportar com estas crianças, não mentir para elas e dizer: “você tem uma boa vida, está tudo bem, não se preocupe, você pode ir para a escola e voltar e terá comida na sua mesa”. A juventude palestina é depressiva. No início da intifada, em outubro de 2000, nós recebíamos telefonemas de crianças que queriam ajuda e perguntavam: “nós devemos jogar pedras no exército israelense, devemos ficar em casa, não irmos à escola, o que devemos fazer. Nossos irmãos e irmãs estão com medo, nos diga o que fazer”.
EC – Qual o significado de jogar pedras?
Marianne – É para muitas crianças um ato de resistência. Elas não têm medo dos soldados de Israel e os querem fora das suas vidas, fora dos seus playgrounds, das suas casas. Os soldados, com seus tanques, roubam a infância das nossas crianças e a pedra é uma forma simbólica de restabelecê-la. Todo o dia, quando vou para o trabalho, eu tenho que atravessar uma barreira chamada Kanandia e eu vejo, sim, crianças palestinas, de 11 a 15 anos, jogando pedras nos soldados de Israel. A pedra para uma criança palestina é também um símbolo de que queremos resistir à ocupação e ao status quo.
EC – Como os jovens e crianças reagem à guerra?
Marianne – As crianças reagem à guerra de formas diferentes: fazem xixi na cama, têm problemas de concentração, ficam revoltadas, têm dores de cabeças, dores no corpo, se tornam deprimidos e param de se alimentar. Elas nunca esquecerão a morte do pai ou quando seu irmão ou irmã foram baleados. As crianças não querem ser como seus pais e avós, que não conheceram nada além da ocupação. As crianças palestinas gostariam de ser como todas as outras crianças no mundo, elas têm o direito de viver e isso deve ser respeitado. Elas desejam coisas simples, aproveitar a praia, sair com amigos. Elas querem se apaixonar e sonhar com um futuro melhor. Mas onde estão os palestinos em todas essas coisas. Eu trabalho com crianças que nunca viram a praia, não têm a menor idéia de como é o mar.
EC – Qual a sua opinião sobre os jovens que morrem pela causa Palestina em atentados suicidas? A Pyalara realiza algum tipo de trabalho referente a esta questão?
Marianne – As crianças, das quais você está falando, perderam a esperança na vida. A ocupação israelense tirou deles tudo o que tinham e as pessoas que amavam. A ocupação os levou até um ponto em que eles não vêem mais sentido na vida. Conseqüentemente, eles pensam que se cometerem um atentado suicida ajudarão no processo de resistência e então passam a ter sentido na vida. O nível de desespero, dor e frustração alcançou tal estágio que as pessoas, em especial as crianças, têm encontrado dificuldades para se adaptar.
Mas é importante destacar que o que nós fazemos é mostrar para estes jovens que existem outras formas de lutar contra a ocupação, através da comunicação, mostrando a verdade ao mundo. Além disso, nós temos uma hotline para aqueles que precisam de ajuda. Estamos treinando universitários para atender às ligações telefônicas e, se os jovens precisam de ajuda psicológica, nós também providenciamos. É importante mostrar para as nossas crianças que ainda é possível ter esperança na vida. Isso é algo que a ocupação tenta roubar delas.
EC – Qual a situação vivida hoje pelos palestinos?
Marianne – As forças de Israel, com helicópteros, tanques e soldados estão cercando a maioria das cidades, as casas, as escolas, os playgrounds e todos os lugares que as crianças costumavam freqüentar. Os soldados atiram indiscriminadamente pelas ruas, prédios e casas. matando crianças e adultos. As crianças estão, constantemente detidas dentro de casa, não têm acesso à escola, aos amigos, às igrejas ou mesquitas. Se alguém se movimenta, pode ser morto instantaneamente. Outras pessoas são retiradas de suas casas para que os soldados possam usá-las como postos militares. Eles colocam franco atiradores nos topos dos prédios e atiram, matando pessoas que passam pelas ruas. O exército israelense não deixa que ambulâncias venham socorrer os feridos. Se tentam se aproximar, eles atiram. As pessoas ficam sangrando, abandonadas nas ruas. Se morrem, não podem ser enterradas, pois ninguém pode sair de casa. Além disso, as forças de Israel têm usado equipes médicas e crianças como escudos humanos. As tropas também invadiram muitos hospitais, onde levaram presos muitos feridos.
EC – Como está a questão do abastecimento de comida e serviços básicos, como água e luz?
Marianne – Aproximadamente 80 mil palestinos estão vivendo sem água e luz. O que você faria se acordasse pela manhã e descobrisse que, por muitos dias, você não terá água e luz? O que você faria, se a comida acabasse e você não pudesse sair para comprar mais mantimentos, porque os soldados podem matá-lo? Imagine que você está ferido e precisa de um hospital, mas ninguém pode vir ajudá-lo. Como você se sentiria? Os jovens palestinos não precisam imaginar tal situação, porque eles a vivem diariamente. Eles temem por suas vidas e a vida das pessoas que eles amam. Seus sonhos são despedaçados e não têm certeza de que sobreviverão um outro dia. As crianças se sentem abandonadas pelo mundo, e isso só aumenta os sentimentos de raiva e ressentimento.
EC – Em meio a todas as dificuldades como fica a questão da educação, do acesso das crianças à escola?
Marianne – Como você vai para a escola se tem barreiras militares e trincheiras nas ruas, como os pais vão ficar tranqüilos, deixando os filhos saírem às ruas quando eles sabem que o trajeto de casa até a escola, que normalmente levaria 15 minutos, leva cerca de três horas a quatro horas, em função das barreiras militares? Ponha-se no lugar dos pais e das próprias crianças. As barreiras militares e as trincheiras estão lá não por questões de segurança. Você chega numa barreira e os soldados israelenses simplesmente não o deixam passar, o que aumenta a raiva e a frustração já que Israel conseguiu privá-lo de mais um dia de aula. Quando não abandonam a escola, as crianças ficam totalmente desorientadas, sem condições de concentração. Talvez, em muitos outros países, as crianças não gostem de ir à escola; as palestinas tomam a ida para a escola como um desafio, é algo que eles querem fazer, mas não podem.
EC – Qual a expectativa dos jovens palestinos em relação à comunidade internacional. Elas acreditam que podem receber ajuda de fora?
Marianne – Não, porque até agora nada foi feito. O que o mundo está esperando? Os jovens querem a ajuda do mundo para mudar o cenário político, querem um intervenção imediata dos países ricos. Querem monitores internacionais que ajudem os palestinos a ganhar proteção. Eles querem ser protegidos da ocupação israelense, mas ninguém os ouve e, mesmo que alguém esteja ouvindo, não está fazendo o suficiente.
Mas há organizações internacionais ajudando no momento. A crise é tão grave que as pessoas só pensam em sobreviver. Por isso, é importante focar a ajuda no envio de medicamentos e comida. A Unicef, por exemplo, nos ajuda em vários programas para a juventude.
EC – A mídia pode ser uma alternativa para mostrar ao mundo a realidade do povo palestino?
Marianne – Algumas pessoas ainda acreditam na mídia. Muitos jovens dizem: “nós devemos escrever cartas e mandá-las para a comunidade internacional, acionar a imprensa”. Mas outras afirmam “vocês devem estar brincando, porque a mídia não fará nada para ajudá-lo”. Sabemos que alguns veículos internacionais estão ao lado de Israel. O lobby judeu na mídia resulta na ocultação de muitas verdades durante a cobertura do conflito. Desde a eclosão da Al-Aqsa Intifada, muitos jornalistas internacionais têm se baseado em informações pouco precisas e cheias de omissões e ambigüidades. Além do mais, muitas agências de notícias não têm acesso à cobertura total do que está acontecendo nos territórios ocupados, pois Israel confiscou as carteiras profissionais de muitos jornalistas e tem impedido muitos outros de entrar em determinadas áreas. Por isso, trabalhamos com a questão da comunicação entre os jovens, desde a ajuda por telefone até a formação de jornalistas.
EC – Existe alguma expectativa de que os conflitos cheguem ao final?
Marianne – Não haverá chance de paz enquanto Ariel Sharon continuar como Primento Ministro de Israel. Ele não é um homem da paz e esta não é a primeira vez que ele é acusado de matar palestinos. Ele foi responsabilizado pela morte de palestinos em 1982, nos campos de refugiados do Líbano e hoje ele está fazendo a mesma coisa. Eu não entendo como o povo israelense elegeu um homem como ele. Quando os palestinos elegeram Yasser Arafat, sabiam que teriam condições de sentar numa mesa de negociações. Sabíamos que ele era um homem de paz. Mas os israelenses votaram em alguém que simplesmente não quer ver os palestinos vivos. Por isso, enquanto Sharon estiver no governo, a presença israelense dos territórios ocupados continuará. Enquanto a ocupação continuar, não haverá chance para a paz. A juventude palestina não está realmente convencida de que possa existir uma solução para o problema. Eles estão mais preocupados com o que poderemos fazer para ajudar uns aos outros.