O riso rolou solto nos salões, corredores e gabinetes do poder mundial, quando o presidente George W. Bush anunciou ao povo norte-americano – durante o bombardeio do Afeganistão – que havia se engasgado e caído da cama, porque desobedecera a sua mãe, engolindo uma bolacha sem mastigar. Mas este foi o único momento divertido destes últimos sete meses em que a incerteza e o medo tomaram conta das relações internacionais, acompanhando uma mudança radical do posicionamento norte-americano, dentro do Sistema Mundial. Os primeiros sinais da mudança, vieram logo depois da posse de Bush, em janeiro de 2001, mas não há dúvida que os atentados do 11 de setembro aceleraram as decisões responsáveis pelo desenho da nova política externa americana que já extrapolou o campo estrito do combate ao terrorismo. Nesse sentido, não há dúvida que o 11 de setembro já se transformou num desses terremotos históricos que clarificam e precipitam acontecimentos e decisões, provocando uma ruptura de tal ordem que, hoje, a “era Clinton” já parece um passado longínquo, uma verdadeira época de ilusionismo coletivo, embalada pela utopia da globalização e da paz universal dos mercados. É por isto que a Sra. Condoleezza Rice, – assessora especial para assuntos de segurança da presidência norte-americana – fala num “momento transformativo”, quando se refere a estes últimos sete meses, e afirma que os Estados Unidos e o mundo estão vivendo uma época análoga à de 1945-1947, entre o ataque nuclear americano ao Japão e o início da Guerra Fria.
Para onde estarão apontando estas mudanças, a longo prazo? Qual o seu significado e a sua lógica expansiva? E como entender a aparente perplexidade e paralisia dos demais governantes do mundo frente à truculência americana na Ásia Central e no Oriente Médio?
Henry Kissinger sugere uma resposta, no seu livro “Diplomacia”, ao sustentar a tese de que o establishment norte-americano sempre esteve dividido e oscilando, desde o final do século XIX, entre duas grandes concepções sobre o que deveria ser a política externa dos Estados Unidos. A primeira – inaugurada pelo presidente Theodore Roosevelt ( 1901-1908) – partidária de uma presença ativa dentro do jogo político mundial, orientada pelo interesse de estado americano e pela concepção européia do equilíbrio de poder. E a segunda – fortemente identificada com o presidente Woodrow Wilson ( 1913-1921) – partidária de uma liderança global dos Estados Unidos, mas baseada na superioridade das virtudes e na defesa dos valores fundamentais da sociedade e do sistema político americano. A primeira, mais conservadora sempre viu os Estados Unidos colocado na posição de “farol do mundo”, e por isso, na prática, tendeu ao isolacionismo. A segunda, entretanto, apesar de liberal, acabou patrocinando várias intervenções salvacionistas, através do mundo. Segundo Kissinger, essas duas posições se alternaram no poder, durante o século XX, na forma de um movimento pendular, que ora deu a vitória ao “realismo” de Nixon, Reagan e Bush, ora ao “idealismo” de Kennedy, Carter e Clinton. O que o modelo de Kissinger não consegue explicar, entretanto, é a própria variação no movimento pendular ou a passagem de um para o outro tipo de política externa. Além disso, se a sua descrição cabe como uma luva na política democrata dos anos 90, o mesmo não se pode dizer com relação à nova política republicana, depois do 11 de setembro de 2001. Ninguém duvida de que a “era Clinton” foi rigorosamente idealista e messiânica, na sua defesa universal do liberalismo econômico e político; dos mercados e da democracia; dos direitos humanos e das “intervenções humanitárias”; dos regimes e dos sistemas colegiados de governança global. E foi rigorosamente liberal na sua aposta, depois do fim da Guerra Fria, na utopia da globalização e num sistema mundial de segurança coletiva, sob hegemonia americana. E não há duvida que logo depois da sua posse, em janeiro de 2001, os primeiros passos externos da Administração Bush pareciam apontar para um novo período de isolacionismo arrogante e exemplar. Depois do 11 de setembro, entretanto, a Doutrina Bush de combate ao terrorismo transformou o “interesse nacional americano” no princípio legitimador de um novo tipo de intervencionismo político-militar, que se propõe ser permanente, preventivo e global.
Já não teria sido assim durante o período Reagan? Não, seguramente não, apesar de que Ronald Reagan também tenha defendido o combate messiânico ao “império do mal”. Mas naquele caso tratava-se de um inimigo perfeitamente identificável, e que seguia sendo o mesmo desde 1947: o comunismo em geral, e a União Soviética em particular. O que Reagan se propôs e fez de maneira vitoriosa, na década de 1980, foi trocar uma estratégia defensiva e reativa de “contenção”, por uma “escalada aos extremos”, visando à destruição definitiva do inimigo, como preconizava a teoria da guerra de Von Clausewitz. Junto com Reagan, Bush também propõe uma bipolarização do mundo entre o bem e o mal, mas sua guerra é contra um inimigo invisível e que não se identifica com nenhum estado em particular. Apesar disso, ela também se propõe levar aos extremos o enfrentamento supondo que o inimigo invisível e universal possa ser destruído, como no caso das “guerras absolutas”. Este paradoxo é que explica o fato de que estejamos frente a uma guerra que não pode ter fim e que será cada vez mais extensa: basta ver que no início se tratava de destruir a rede do Al-Qaeda e o regime Talibã do Afeganistão, mas hoje as tropas americanas já estão presentes – em nome da mesma guerra – na Argélia, Somália, Yêmen, Afeganistão, Filipinas, Indonésia e Colômbia. A própria definição do inimigo já foi modificada três vezes nos últimos meses: primeiro foram as “redes terroristas”; depois, o “eixo do mal”, constituído pelo Iraque, Irã e Coréia do Norte; e agora, os “estados produtores de armas de destruição de massa”, categoria que inclui – neste momento – quase todos os aliados americanos na guerra do Afeganistão. Na nova doutrina, o adversário não é uma religião, ideologia, nacionalidade, civilização ou um estado, e pode ser redefinido a cada momento, sendo portanto “infinitamente elástico”. Por trás desta elasticidade, entretanto, ao que se está assistindo é um deslizamento do objetivo central da Doutrina na direção de uma estratégia de “contenção universal”, como já vem sendo preconizada desde 1989, pelos mesmos homens que hoje dirigem o Departamento de Defesa dos Estados Unidos.
Logo após a queda do muro de Berlim, o atual vice-presidente dos Estados Unidos, Dick Cheney, então secretário de defesa do primeiro Bush, criou uma força-tarefa para pensar a nova posição dos Estados Unidos no mundo, depois do fim Guerra Fria. Incluía Paul Wolfowitz e vários outros membros do atual governo, como Lewis Libby, Eric Edelman e Donald Rumsfeld – o atual secretário de defesa, associado a Cheney há mais de trinta anos – além de Colin Powell, o mais moderado entre eles, desde aquela época. Foi com base no relatório desse grupo de trabalho que o presidente Bush – o pai – formulou seu discurso sobre a nova política externa americana, no dia 2 de agosto de 1990, o mesmo dia da invasão do Kuwait, pelo Iraque. Por isso, naquele momento, sua proposta ficou num segundo plano e, mais tarde, foi engavetada pela surpreendente vitória eleitoral dos democratas de Bill Clinton. Depois do 11 de setembro, entretanto, ela foi desengavetada pela mesma equipe que a havia formulado dez anos antes. E é ali que se esconde o verdadeiro segredo da nova estratégia e de sua lógica expansiva e truculenta. Basta prestar atenção no seu objetivo central que está definido desde então: impedir o aparecimento, em qualquer ponto do mundo, e por um tempo indefinido, de qualquer outra nação ou aliança de nações que possa se transformar numa grande potência, capaz de rivalizar com os Estados Unidos. Como se vê, também se trata de uma estratégia de “contenção”, como a que foi proposta por George Kennan – com relação à União Soviética – e adotada pelos Estados Unidos, depois de 1947. Agora, contudo, o que os republicanos estão propondo não é mais a contenção de uma ideologia ou de um estado nacional em particular, é o bloqueio ou destruição preventiva de qualquer tipo de poder que se proponha competir globalmente com os Estados Unidos. É isto que explica o fato de que a Doutrina Bush tenha ido deslocando seu foco na direção de um inimigo que, ao fim e ao cabo, pode ser qualquer estado – mesmo que seja um aliado – que demonstre intenções expansivas. E aqui de novo, como no caso dos terroristas, quem determina a existência ou não de alguma “vontade competidora” a ser contida ou destruída, são os próprios Estados Unidos. É por isto que eles não assinaram o “Tratado de Não-Proliferação de Armamento Nuclear”, abandonaram o “Tratado Antimísseis Balísticos”, e decidiram construir um “Escudo Antimísseis”. Em todos os casos, foram decisões destinadas a enviar uma mensagem muito clara ao sistema político mundial. A de que estão dispostos e vão manter uma dianteira tecnológica e militar inquestionável com relação a todos os demais estados do sistema. Uma distância que dará aos Estados Unidos, por um tempo indeterminado, o poder de arbitrar isoladamente a hora e o lugar em que seus adversários reais, potenciais ou imaginários devam ser “contidos”, através da mudança de regimes e governos ou através da ação militar direta. Como é óbvio, nesse contexto, soberania e democracia são dois valores que ficam em suspenso por um tempo indeterminado, mas ao mesmo tempo, várias ações e situações através do mundo, que parecem a primeira vista uma mera truculência, de repente adquirem lógica, e passam a ser “racionais”, lamentavelmente.