Nada pior do que um prepotente com razão. A “razão” dos Estados Unidos perdurará enquanto estiverem vivas as imagens terríveis daquelas torres queimando, mas vai sendo solapada a cada nova notícia de civis mortos por suas bombas burras, ou bombas inteligentes desvairadas, no Afeganistão. A licença para matar deve ter um limite. Só se espera que o limite não seja o número de inocentes mortos no Afeganistão igualar o número de inocentes mortos em Nova York e Washington, para declararem um empate técnico. Com o tempo, a moral das bombas “cluster”, de fragmentação, vai ficando indistinguível da moral dos aviões que derrubaram as torres: nos dois casos os estragos colaterais não são circunstanciais ao objetivo, os estragos colaterais são o objetivo.
Ninguém é contra a ação antiterror, como ninguém era contra a guerra ao narcotráfico quando os americanos invadiram o Panamá para pegar o general Noriega. Foi a mais custosa – em dinheiro e vidas humanas – operação policial da História. O Noriega está preso (nem sei, está preso?), mas o tráfico de drogas, pelo que se sabe, só aumentou de lá para cá. A comparação deve manter todas as apropriadas proporções, que são gigantescas, mas, arrasando um país para “pegar” um homem ou uma organização que talvez nem estejam mais lá, os americanos repetem o Panamá, numa afronta – esqueça a moral e os mortos – a qualquer noção mínima de custo/benefício. Bush declarou que o objetivo não é apenas prender ou eliminar Bin Laden, “The Evil One”, e que a guerra será contínua, e longa. O que traz de volta a questão da licença que sua indignação legítima dá aos americanos. Que seu limite não seja apenas a capacidade do fabricante de produzir novas bombas de fragmentação. E que a prepotência tenha pelo menos mais efeito sobre o flagelo do terrorismo do que a prisão espetacular de Noriega teve sobre o flagelo das drogas.
Mas, enfim, estou aqui, longe das bombas e dos venenos, só dando palpite sobre o que leio e ouço falar. Não sei da metade do que está acontecendo, nem no chão do Afeganistão nem nos tapetes de Washington. Para dizer a verdade, o único fato da atualidade que posso aferir diretamente, porque vejo pela janela, é que um casal de sabiás caminha no quintal da minha casa. Aliás, não sei se é um casal. Também é palpite! Eles podem ser apenas bons amigos, desfrutando a primavera.