A primeira Cruzada dos cristãos partiu da Europa para castigar os mulçumanos e conquistar a Ásia Menor, em 1096. Em 1099 já haviam conquistado Jerusalém, mas só alcançaram seu objetivo estratégico, depois da tomada de Trípoli, em 1109. Foi, portanto, uma vitória demorada, mas o que é pior, é que foi apenas o início de uma guerra secular. Depois, sucederam-se muitas derrotas e vitórias, até o fim da sétima Cruzada, em 1270, quando foi assinada a Paz de Tunis que obrigou a lenta retirada dos europeus e o abandono da Terra Santa, entregue aos muçulmanos, em 1291. Deste ponto de vista, as Cruzadas foram um completo fracasso. Mas também é verdade que foi durante este mesmo período que se consolidou o poder imperial do Papa, sobre a cristandade e o poder econômico das cidades italianas (Amalfi, Veneza, Gênova, Florença e Milão ), sobre o comércio de longa distância, com a Ásia. Foram quase dois séculos de império, guerras e derrotas, mas não se pode esquecer que foi neste tempo que se plantaram as primeiras sementes do “milagre capitalista”, que ocorreria mais tarde, exatamente na terra dos cruzados, e não na dos ricos e comerciantes asiáticos.
No fim de setembro de 2001, ocorrerá um novo ataque militar à Ásia Menor, liderado pelos EUA e com o apoio dos europeus. Foi anunciado como início de uma “guerra prolongada”, do “bem” contra o “mal”, mas, neste caso, não está muito claro, nem mesmo para os “ocidentais”, o que seja o “bem”, apesar de que todos estejam de acordo sobre quem seja portador do “mal”. As declarações oficiais apontam para uma grande ofensiva da maior potência militar do mundo contra as ruínas de um país e de um povo cuja história milenar já teve seus momentos de glória e sofisticação cultural, mas que esteve, quase sempre, submetido à dominação externa, mesmo quando se transformou – no século XIX – na tumba de vários generais ingleses. Hoje, é uma sociedade tribal miserável, controlada por um grupo religioso fanático, que é, na verdade, o último subproduto asiático da Guerra Fria. Por isso, nenhum analista internacional acredite que esta ação militar se restrinja ao Afeganistão, sobretudo depois que o subsecretário de Defesa norte-americano, Paul Wolfowitz, declarou que “não se trata apenas de capturar essa gente e fazer com que paguem pelo que fizeram. Se trata de eliminar os santuários, os sistemas de apoio, acabar com todos os Estados que patrocinam o terrorismo”. Esta é sua opinião, mas a verdade é que não existe consenso entre os “aliados”, sobre os objetivos estratégicos ou de médio prazo desta operação vingativa. Até onde levar a ofensiva militar? Qual seu objetivo final? O “ocidente” estará disposto a retomar o seu controle colonial sobre a Ásia Menor? Ou pretende apenas “concluir” a Guerra do Golfo, por um caminho transverso?
Este impasse não é novo. Era menos visível, mas já existia entre os 27 países da coalizão que derrotou e destruiu o Iraque, em 1991. E manteve-se presente, durante toda a década de 1990, por trás da prolongada indecisão dos norte-americanos e dos europeus no caso das “intervenções humanitárias” na Somália, na Bosnia e no Kosovo.; no caso da decisão sobre as novas fronteiras e funções da OTAN; no caso do bombardeio do Sudam; no tratamento dos “estados párias”, etc. Na Guerra do Golfo, havia a questão do petróleo, como interesse comum, e a soberania do Kuwait havia sido violada. Apesar disso, e dos 150.000 iraquianos que foram mortos pelos bombardeiros aliados, a guerra foi inconclusiva, deixando o governo do Iraque nas mãos de Saddam Hussein. Na situação atual, não existe um interesse material comum, nem tampouco existe alguma regra do direito internacional que tenha sido claramente infringida. É por isso que o mundo acompanha espantado a forma como a discussão sobre a legitimidade do “pacto de guerra”, deslocou-se do campo do Direito Internacional, para o campo do Direito Penal, na espera da investigação que permita caracterizar o crime e decidir o castigo de uma pessoa física. Em termos estritos e jurídicos o que os europeus, pelo menos, estão discutindo, é a legalidade de uma guerra que seria declarada por razões penais. Uma guerra de vários Estados e exércitos aliados, para castigar um indivíduo, no caso em que for comprovado seu envolvimento nos atentados ao Pentágono e ao World Trade Center. O que é no mínimo uma extravagância histórica, quando não se compreende o impasse político- internacional, que se esconde por trás desse paradoxo.
Quando a Guerra do Golfo começou, recém haviam sido realizadas duas reuniões do G7 – em Huston e Dublin – convocadas explicitamente para sacramentar o fim da Guerra Fria e analisar a vitória da “liberal-democracia” e dos mercados, que deveriam ser os dois alicerces da nova ordem mundial que nascia das ruínas do Muro de Berlim. Naquele momento, a Guerra apareceu, para a opinião pública mundial, como um fato surpreendente e destoante, apesar de que seus antecedentes fossem de total conhecimento dos principais governantes do mundo desenvolvido. No final, entretanto, a guerra acabou cumprindo um papel decisivo no estabelecimento da “nova ordem mundial”, porque foi ela que definiu o limite último da soberania dos estados, em cada um dos degraus da nova hierarquia do poder mundial. Em Bagdá, como em Hiroshima e Nagasaki, a história deu razão, uma vez mais, ao realismo de Hobbes, que nos ensinou – na hora em que nascia o sistema interestatal, no século XVII – que “é preciso a ordenação de um poder soberano, para que se possa então definir o que é a eqüidade e a justiça”, uma vez que “é a autoridade e não a verdade que faz a lei, (porque) antes que se designe o que é justo e o injusto, deve haver alguma força coercitiva”. O bombardeio do Iraque cumpriu, em 1991, um papel equivalente ao de Hiroshima e Nagasaki, em 1945: estabeleceu através do poder das armas, quem seria o novo “poder soberano” e a “força coercitiva” que definiriam, a partir dali, o que fosse “o justo e o injusto” no campo internacional.
A II Guerra Mundial e a Guerra Fria podem ser lidas como parte de uma mesma “guerra civil” européia, quase contínua, desde o século XV. Mas a Guerra Fria não teve nenhuma batalha na Europa e terminou no Iraque, na forma clássica das “guerras imperiais”, e sem a participação direta da URSS. Como conseqüência, não houve, em 1991, nada parecido com os acordos interestatais assinados na Paz de Westphalia, de 1648; no Congresso de Viena, de 1815; no Congresso de Versailles, de 1918; ou mesmo, nas reuniões inconclusivas de Yalta e Potsdam, de 1945. Não foram definidas as novas regras em que se fundamentaria a governance global. Mesmo que todos reconhecessem a superioridade inconteste do poder militar, financeiro e informacional dos Estados Unidos, não se estabeleceu nenhum princípio normativo, nem acordo operacional, sobre o uso das armas e da violência e da guerra; sobre a criação e legitimidade das novas leis internacionais; nem tampouco sobre o funcionamento do novo sistema financeiro global. Neste sentido, a história parece ter confirmado, em parte, nossa suspeita e angústia, logo depois do fim da Guerra do Golfo 1: “tudo indica que este novo poder global se definirá pela bússola de interesses norte-americana. Mas, neste caso, seguirão indeterminados os verdadeiros limites e contornos do exercício da força e do medo, porque é cada vez mais difícil identificar, no espaço interno internacionalizado dos Estados Unidos, o que seja verdadeiramente o “interesse nacional” da sociedade norte-americana. A menos que se considere que este interesse seja definido, permanentemente, pelo complexo militar-industrial e pelas estruturas supra-nacionais de gestão da guerra, lideradas pelos Estados Unidos. Por isso, pode-se afirmar com toda certeza que se a Guerra do Golfo decantou um novo princípio ordenador nas relações internacionais, ela deixou sem resolver uma questão decisiva: quais serão os limites, ou quem limitará o uso abusivo da força e do medo? A impressão que fica é que Guerra do Golfo deixou um verdadeiro “buraco negro”, no lugar da Guerra Fria. Uma espécie de vácuo assustador, por onde pode se dispersar em múltiplas direções entrópicas, a enorme força liberada pelo exercício, sem limite, do poderio tecnológico-militar dos Estados Unidos. Se isso for verdade, pode-se concluir que esta Guerra, ao invés de conduzir a humanidade para um novo patamar civilizatório e contribuir para a universalização dos valores construídos pela razão cosmopolita da Europa iluminista, pode ter sido apenas a ante-sala de uma nova era, que será caracterizada pela força e o medo, instalados dentro da própria coalizão vitoriosa”.
Olhando dez anos depois, fica claro que, naquele momento, o mundo começava a conviver com a ausência de algum tipo de bipolarização internacional, que sempre existiu desde o século XVI, mesmo nos momentos em que o sistema geopolítico parecia apoiar-se apenas num equilíbrio multipolar de poderes. Nestes séculos, não foram só as hegemonias, foram essas bipolaridades que se transformaram no eixo de referência de todo o sistema. Foram elas, em última instância, que permitiram o funcionamento do próprio “equilíbrio de poder” entre os demais estados, apoiado no exercício eficaz de algum tipo de “negarquia” internacional: “uma combinação de forças capaz de conter o uso arbitrário e egoístico do poder e de garantir seu emprego, pelo menos em parte, para a promoção do bem comum”2. Foi assim, e não com base em falsos consensos, que foram sempre criadas as regras de convivência e competição, entre as Grandes Potências do “núcleo central” do sistema político mundial.
Depois do fim da Guerra do Golfo e da URSS, na década de 90, foi possível driblar o problema, graças ao extraordinário sucesso econômico americano, responsável pela força de sua ideologia globalitária e de sua proposta de coordenação hegemônica da economia mundial. Mas, na entrada do século XXI, este projeto perdeu força frente às evidencias da polarização do poder e da riqueza, que ocorreu à sombra da utopia da globalização. Logo depois, começou a desaceleração do “milagre econômico” americano e assumiu a Administração Bush, confusa, arrogante, mas tentando se orientar pela velha bússula da raison d’état, inventada por Richelieu. Portanto, o que nos anos 90 apareceu como se fosse um projeto de hegemonia global “benevolente”, transformou-se, na década seguinte, num projeto imperial explícito, trazendo de volta o problema da inexistência de regras e consensos pactados entre as Grandes Potências. Problema agravado pelas fraturas internas, cada vez mais graves, dentro do establishment norte-americano, como se viu na luta política fratricida, travada em torno da tentativa de impeachement do presidente Bill Clinton. Para não falar da luta e da forma em que George W. Bush foi conduzido à presidência dos Estados Unidos.
Essa fragmentação e incerteza política interna, da sociedade americana, somada à ausência de limites externos ao seu poder militar e financeiro, têm sido os principais fatores de desestabilização da nova ordem imperial americana, inaugurada em 1991. A crise atual pode recompor a elite americana e ajudar na imposição/aceitação de algumas regras do novo Império. O “pacto de guerra” que foi proposto é simples e maniqueu, não deixa lugar para alternativas: “quem não está com os Estados Unidos, está com os terroristas”, e nenhum estado ou governante estará com os terrotistas. Mas não há como enganar-se, porque os conflitos de interesse são muito mais complexos, e por isso as divergências, tensões e incertezas se manterão dentro do “núcleo central” do sistema, até que surja uma nova bipolaridade efetiva e eficiente.
Do ponto de vista da Ásia Menor, entretanto, os acontecimentos terão conseqüências completamente diferentes. O historiador norte-americano, David Abernethy3, sugeriu, recentemente, a hipótese de que a “dominação global” européia, obedeceu, desde o século XV, a uma regra de sucessão de fases análogas. A cada onda de expansão colonial (seculares), sucedeu uma reversão descolonizadora (menos prolongada) . A última delas, depois da II Guerra Mundial. Se essa sucessão for uma tendência e se mantiver vigente, o novo “pacto de guerra”, proposto pelos norte-americanos, pode se transformar numa nova fase expansiva da “dominação global” e começar pelo estabelecimento de um “protetorado militar”, em algumas regiões da Ásia Menor e da Palestina, compartido pelos aliados, mas mantido, em última instância, pelos anglo-saxões. Nesse caso, o “pacto de guerra” se transformaria numa nova versão do Congresso que se realizou em Berlim, em 1885, quando as Grandes Potências européias decidiram entre si as regras da repartição colonial da África e da Ásia.