Karl Marx já dizia que o operário cada vez empobrece mais na medida em que produz m
ais riquezas, o que faz com que ele se torne uma mercadoria mais vil do que as mercadorias por ele criadas. Para os “operários da arte”, se é que se pode definir assim aqueles que carregam o piano nas costas de forma anônima para que a obra apareça, essa máxima não se aplica. Muitos emprestam seus talentos individuais, artísticos ou não, para algo que consideram maior que sua pequena, porém fundamental contribuição e recebem por isso. Muitos trabalham de forma apaixonada, mas arte pela arte, nem pensar. Sabem o valor que têm.
Marilurdes Rodrigues, produtora cultural, con sidera a existência dessas pessoas “essenci ais à produção artística”. Ela própria faz parte do elenco de anônimos que fica por trás do que aparece para o público. Mas o próprio Marx já dizia que a existência precede a essência. Sendo assim, quem são esses operários? São os milhares de trabalhadores, muitas vezes também artistas, que se especializaram em algum ofício relacionado à produção cultural. Eles vivem longe da fama, embora geralmente reconhecidos no meio. Eles são assistentes de palco, produtores, iluminadores, serralheiros, carpinteiros, atores, músicos, soldadores, montadores de palco e cenários, enfim, uma infinidade de homens e mulheres que emprestam seu talento e mão-de-obra nos bastidores para que o show possa continuar.
Para eles pouco importa a mais-valia. Ganha-se bem ou mal. Depende de quem contrata. O que importa é o resultado medido pelo aplauso. “O que interessa é que o show não pode parar”, diz Nick, 27 anos. Ele foi roaddie (assistente de palco) e hoje é produtor de palco e operador de som. Ele já trabalhou com vários artistas locais e de reconhecimento nacional como Daniela Mercury, Mamonas Assassinas e diversos astros internacionais que se apresentaram no Brasil, como Jamiroquai, George Clinton e muitos outros. Parece pouco, mas sem o assistente e o produtor de palco as coisas se transformariam em um caos. Alguém precisa afinar os instrumentos, verificar se todos os amplificadores estão funcionando. Até mesmo a disposição do fios sobre o tablado deve ser organizado para que os artistas possam se locomover em segurança. “A quantidade de detalhes é tanta que se o próprio artista tivesse que se preocupar com isso, seria inviável”, completa Nick. O caso dele é o mesmo de quase todos os demais que atuam nessa área. Por ser músico, começou a freqüentar os estúdios ainda adolescente e aos poucos foi se especializando. O mercado fonográfico e de entretenimento é competitivo e não absorve a grande quantidade de músicos existente. Muitos deles se dedicam a atividades periféricas como esta. “É a minha forma de continuar em contato com o palco. Quando vejo o público delirando me sinto gratificado. Sempre me emociono, seja quem for o artista. Adoro o meu trabalho. Hoje em dia só toco minha guitarra em casa mesmo.”
José Enio Lima Chaves, o Zé da Grua, também se enquadra entre os apaixonados. Poucos travelings e movimentos verticais e horizontais de câmeras do cinema gaúcho não passaram pelas suas mãos. Figura conhecidíssima no meio cinematográfico, é um desses operários. Considerado o melhor operador de grua (braço mecânico para movimentação de câmeras)do sul do país, confessa ainda não ter o suficiente para comprar um telefone celular, mas se considera bem remunerado mesmo assim. Dos seus 49 anos, trabalha na grua há 27. É responsável por movimentos de câmeras de filmes como Tolerância, Lua de Outubro e quase tudo que é filmado no sul. “A coisa que eu mais adoro é trabalhar com isso, principalmente quando tem que executar movimentos que exigem bastante sensibilidade”.
Viver de arte é difícil. Todo mundo sabe. Cisco Malevic, 20 anos, banca, junto com seu parceiro de composição, um projeto musical próprio, mas que ainda não traz qualquer remuneração. Para pagar o aluguel e as contas, ele empresta seus outros talentos em troca de remuneração. Cisco desenvolveu uma técnica nada a ver com música, mas sim com maquiagem. Trata-se da criação de máscaras de material sintético que imitam a pele humana. “Geralmente sou procurado por artistas plásticos e pessoal de TV e cinema.” Outra curiosidade é que o rapaz desenvolveu um produto que imita sangue e é comestível. “Recebo encomendas de todo o país já que o sangue artificial importado é bem mais caro e, às vezes, difícil de encontrar”. Nesse caso Cisco, além de artista é operário de outros artistas como Eduardo Antunes, artista plástico porto-alegrense. “Eu geralmente trabalho com muitos prestadores de serviço, os peões como chamo de maneira carinhosa. Embora, eu próprio domine várias técnicas, acabo contratando outras pessoas para executarem parte das minhas esculturas.” Eduardo contratou Cisco para confeccionar rostos para algumas obras que está realizando. “Eu distribuo partes do trabalho para pessoas diferentes. Depois junto tudo e parto para a finalização. Muitas vezes as pessoas não tem idéia de como vai ficar a escultura, pois está envolvida apenas com um detalhe. Apesar de ser o dono da idéia, sem essas pessoas dificilmente conseguiria executar o projeto que idealizei”, explica Eduardo. Mas a coisa não pára por aí. O próprio Eduardo é operário de outro artista plástico, neste caso o irmão Alexandre Antunes. O artista, assim como o próprio Eduardo teve vários trabalhos expostos em diversos salões no Brasil e exterior. Sua técnica implica em cobrir objetos com papel-alumínio. Os dois já trabalham juntos há anos. Para viabilizar algumas obras com imagens digitais, Alexandre terceirizou a execução do trabalho para Eduardo. Segundo Alexandre, o fato dele não dominar a tecnologia da computação gráfica não impede que possa executar uma idéia pelas mãos de outro, no caso o operário. Obviamente trata-se de um operário de luxo, com censo estético, na verdade outro artista. “A idéia é minha e a mão-de-obra é dele. Mesmo assim a autoria intelectual continua sendo minha. Fui eu quem contextualizei as imagens e sugeri as interferências. Todo o resultado está sob o meu controle. Apesar de eu sequer saber tocar no mouse do computador. Neste momento o operário, no caso, deixa de ser artista, momentaneamente para ser um técnico a serviço do artista”, explica. “Já não existe mais aquele conceito romântico de artista criador que executa todas as etapas da obra. Qualquer um pode criar, dominando ou não a técnica. Cabe ao artista ter idéias e aos técnicos executá-las”.
Há também os que literalmente precisam “se virar”, para garantir o sustento. É o caso de André Birck, bailarino, que atua como roaddie do músico Nei Lisboa e também como operador de som. Sem esquecer que o próprio Nei desempenha uma etapa importantíssima no processo industrial editorial, o da editoração eletrônica, tarefa que já lhe garante alguns extras há algum tempo. Mas isso já é outra história. Além disso, Birck faz da própria atividade de dançar um operariado à parte. Dá aulas de balé clássico além de atuar como bailarino contratado em vários grupos. Especializou-se também em montar trilhas para dança e tira dessa gama de atividades o seu sustento. “Tenho que me virar. Atacar em várias frentes é a única forma de sobreviver. Apesar da dança ser o principal objetivo da minha vida não consigo viver exclusivamente dela. Isso é bem comum no meio artístico. Todo mundo aprende a fazer um pouco de tudo para sobreviver e se manter inserido no meio”. Birck também coordena os eventos de dança promovidos pela Prefeitura de Porto Alegre, além de fazer a direção de outros artistas.
Susana Cardoso, que tem formação acadêmica na área de Artes Plásticas com cursos no Exterior, especializou-se em um outro ramo que não o de criação. A paixão pela arte levou-a a dedicar-se à restauração de obras. Hoje ela é responsável pela recuperação de pinturas murais e por laudos técnicos de obras de pintores famosos, como Di Cavalcanti, Portinari e Iberê Camargo. “Nenhum quadro pode sair de um museu para o outro sem um laudo de conservação desses. É esse laudo que diz se a obra sofreu algum dano no caminho ou não”, explica. No momento, ela trabalha nas pinturas do hall de entrada da Faculdade de Direito da UFRGS, em Porto Alegre. Seu trabalho, apesar de altamente especializado, requer paciência e minúcia, além de conhecimento de todas as técnicas. Lavar paredes, preparar cimento e subir em andaimes são algumas das atividades. “Não tenho dúvida de que somos faxineiras e operários de luxo. Mas a arte precisa disso para permanecer viva. Alguém tem de fazer este trabalho para que mesmo com a ação do tempo as obras sejam preservadas.” Dado o relato, voltemos a Marx que diz o seguinte: ao criar algo fora de si, o operário se nega no objeto criado. É o processo de objetificação. Por isso, o trabalho que é alienado (porque cria algo alheio ao sujeito criador) permanece alienado até que o valor nele incorporado pela força de trabalho seja apropriado integralmente pelo trabalhador. Em outras palavras, a partir do momento que o sujeito-produtor dá valor ao que produziu, ele já não está mais alienado.