Há quatro anos em vigor, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) propõe uma avaliação que busca promover e registrar competências e habilidades dos alunos. Diz a lei: “a verificação do rendimento escolar observa os seguintes critérios: a avaliação contínua e cumulativa, o desempenho do aluno com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais”. Sendo assim, a mensuração do conhecimento por meio de notas e o desenvolvimento de atividades escolares com fins quantitativos do saber, dentro desta nova perspectiva de avaliação, é uma prática que pode ser abandonada conforme o cumprimento da lei. Mas, “se conseguimos constatar o stress nas escolas no período de final de ano, isso é prova de que a lei não foi aplicada”, afirma Elizabeth Krahe, professora e membro do Departamento de Estudos Especiais da Faculdade de Educação da UFRGS.
Dá um branco, fico estressada quando tenho que fazer uma prova”, desabafa Bruna, de 16 anos, aluna do segundo ano do ensino médio de uma escola centenária da rede particular de ensino em Porto Alegre. O depoimento de Bruna, ilustra o diagnóstico de Elizabeth. Entretanto, a estudante comenta que agora há muito mais chance de passar devido às novas formas de recuperação adotadas pelo colégio nos dois últimos anos.
Aluna da escola desde o maternal, Bruna comenta ter passado por vários tipos de avaliação. Durante a escola infantil e o ensino fundamental, não havia nota e ao final de cada bimestre os alunos recebiam pareceres descritivos, “havia muito mais contato com os professores”, salienta a garota. Só que hoje, conforme explica a estudante, não há interesse em entender os alunos maiores, “a coordenação está distante”, reclama.
Segundo ela, o adolescente só é ouvido quando vem acompanhado dos pais, “quando eu tento resolver os meus problemas, não me ouvem”, critica.
O pequeno recorte possível através dos comentários de Bruna dão visibilidade a algumas dificuldades na mudança de cultura escolar brasileira quando avalia e recupera seus alunos. Para Graciela Aço, há quinze anos coordenadora geral do Colégio Americano, mesmo que a LDBEN não tenha perturbado o processo de debate sobre avaliação já existente na escola, os professores sentiram-se desconfortados frente aos novos critérios para a recuperação e a possibilidade de abandonar as notas. “Eles aprenderam assim”, justifica Graciela referindo-se ao tempo de estudante de seus professores.
De origem portuguesa e tendo vivido na Suíça por alguns anos, a professora avalia que o Brasil tem uma característica bastante competitiva o que dificulta mudanças como as sugeridas pela nova LDBEN. Neste sentido, ela critica a lei quando oferece algo que não pode cumprir, “a LDBEN realmente dá muita abertura, mas nós sabemos que lá fora é tudo a base de concursos, da concorrência, de fazer o melhor para vencer”. Este também é o argumento que Graciela ouve dos pais quando procuram a escola, e mesmo dos professores quando deparam com o desafio de avaliar sem quantificar o que é dado em sala de aula. Particularmente, ela confessa que gostaria de ver o aluno chegar ao ponto de estar na escola pelo prazer de estudar, afinal “aprendizagem é uma necessidade para a vida”, argumenta.
Mesmo assim, reconhecendo todos os impedimentos impostos pelo desconhecimento dos professores quanto à nova lei e de uma cultura nacional que privilegia valores quantificáveis, Graciela afirma que o Americano tem como objetivo junto ao seu corpo docente composto por cem professores, aprimorar seus procedimentos avaliativos e de acompanhamento do aluno. A coordenadora confessa que, assim como outras escolas, o Americano limitava-se à recuperação de final de ano.
Porém, com a nova lei, a escola sentiu-se obrigada “positivamente” a realizar o trabalho de revisão dos conteúdos já trabalhados em aula durante o ano letivo, uma vez que, agora, tal recuperação passou a constituir-se em atividade obrigatória, comenta Graciela.
O processo lento de adaptação à nova lei é natural para a coordenadora que afirma não poder impor aos professores novas formas de atuação em sala de aula sem que antes haja muita discussão. Sendo assim, depois de muitas reuniões com diferentes setores da escola (equipe técnica, professore e direção), foi possível chegar a um consenso neste ano. Entretanto, ainda é necessário haver algumas adequações para que o trabalho de recuperação seja mais “preciso”, constata a coordenadora.
Mas se nas escolas particulares, é mais uma questão de tempo para que o sistema de recuperação e avaliação sofra as alterações necessárias frente a LDBEN de 1996, na rede pública de ensino os impedimentos são outros. “Enquanto o professor da escola pública tiver que trabalhar três turnos para sobreviver, enquanto tiver turmas de quarenta alunos e depender apenas do giz e quadro negro, fica muito difícil implantar estas propostas que prevê a LDBEN”, critica Elizabeth Krahe, professora e membro do Departamento de Estudos Especiais da Faculdade de Educação da UFRGS, que tem como tema de sua dissertação de Mestrado a avaliação em uma escola pública de ensino médio da rede estadual. Segundo Elizabeth as leis são utópicas, trabalham a partir de um ideal.
A pesquisadora lembra ainda que o problema de turmas numerosas não se restringe ao ensino público, as escolas privadas têm verdadeiros auditórios, afirma a professora, o que inviabiliza qualquer acompanhamento mais qualificado conforme recomenda a lei. Nenhum professor, de escola pública ou privada, que tenha um total de 90 alunos distribuídos em três turnos, manhã, tarde e noite, tem condições de dar um bom atendimento para cada um destes alunos, ou mesmo oferecer recuperação diferenciada.
Para Elizabeth, propostas como a LDBEN funcionam muito bem em turmas pequenas, com um número grande de horas aula dispensada a cada uma das turmas, ou também em turmas até a quarta série do ensino fundamental. Nos demais casos, devido à estrutura que o ensino brasileiro tem, de fragmentação das disciplinas, fica inviável tais práticas.
Por outro lado, a professora defende uma avaliação qualitativa conforme está na lei, mas adverte que antes de tudo é preciso atualizar o professor, fazê-lo experimentar os novos procedimentos que estão previstos na LDBEN.
Segundo ela, é necessário convencer o professor dos aspectos positivos de uma avaliação mais contínua, de um acompanhamento mais permanente dos alunos.
Desta forma, Elizabeth elogia a lei ao afirmar que a LDBEN caminha para a tentativa de não colocar etiquetas nos alunos, não estigmatizá-los. Dentro desta perspectiva, diz a pesquisadora, a escola passa a viver um trabalho processual e a idéia de constante fluir, de caminhar, onde não há oportunidade para o erro de marcar o aluno em um momento “x” de sua vida, como acontece na escola tradicional, ainda maioria no ensino brasileiro.
Mesmo em sua experiência como professora do curso de Pedagogia, Elizabeth percebe a dificuldade de suas alunas e futuras professoras em trabalhar de outra forma que não seja através da avaliação tradicional, expressa através de notas e provas.
Assim como a coordenadora pedagógica do colégio Americano, a pesquisadora da UFRGS vê como outro empecilho o cumprimento da lei a mentalidade competitiva manifesta pela sociedade brasileira. Para ela é o próprio modelo neoliberal sustentado pelo governo que contrapõe-se à lei que ele mesmo sustenta, “a contradição está em toda parte”, afirma Elizabete quando comenta sobre as políticas do governo federal. Convidada a falar em um seminário de educação em Buenos Aires, a professora apresentou um trabalho de análise das diretrizes curriculares do ensino médio brasileiro onde mostra que aparecem todas as propostas progressistas da educação no Brasil elaboradas desde a década de 70. Segundo ela, com o objetivo de tornar aceitável a nova LDB, a lei se “apropria de um discurso progressista para uma prática conservadora”.
A proximidade dos prazos
Se final de ano ainda representa stress para alunos e professores frente à avaliação, 31 dezembro de 2000 vem contribuir para o clima de agitação em muitas das dez mil escolas das três redes de ensino do Estado. É que até esta data os estabelecimentos de ensino médio e aqueles que oferecem educação profissionalizante deverão apresentar ao Conselho Estadual de Educação seu regimento adaptado à lei 9394 as demais escolas, de ensino fundamental e de educação infantil, têm mais um ano para encaminhar seus regimentos.
Janine Herscovitz, pedagoga e assessora técnica há dez anos do Conselho, diz que desde 1996, quando entrou em vigor a versão atual da LDBEN, o Conselho não foi tão requisitado pelas escolas como tem acontecido nos últimos meses para prestar assessoria com relação à LDBEN. Segundo ela, isso se deve à preocupação das escolas em conseguir passar para o papel seu entendimento e encaminhamentos locais a partir da lei. “Todo período de transição é difícil”, explica a técnica. Segundo ela, esse momento de mudança fica ainda mais problemático quando os professores se deparam com uma lei tão flexível, “é difícil usar a liberdade”, argumenta.
Quanto aos aspectos da avaliação e da recuperação, Janine tranqüiliza que nenhuma escola estará infringindo a lei se adotar este ou aquele sistema de registro do desempenho do aluno, “não é ilegal usar nota”, brinca a assessora. Para o Conselho, esclarece, o estar dentro da lei é elaborar um regimento de forma coerente com a comunidade para a qual se destina.
Entretanto, Janine ressalta que cada escola deverá ter condições administrativas adequadas antes de adotar uma prática diferente, do contrário, serão os professores os maiores prejudicados com acúmulo de tarefas.