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Tiros no shopping

por Gilson Camargo / Publicado em 10 de novembro de 2016

Tiros no Shopping

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

As políticas públicas para a segurança há muito tempo já não produzem qualquer resultado em benefício da sociedade. Ao contrário, devido a equívocos e omissões, o Estado acaba produzindo mais violência e impunidade, o que legitima e fortalece o crime organizado. Resultado: a criminalidade avança sobre redutos onde a classe média se julgava em segurança

Enquanto os homicídios ocorriam longe da classe média os dados não comoviam. As principais vítimas são jovens, na maioria homens, negros, moradores das periferias das regiões metropolitanas. O Atlas da Violência 2016, estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FPSP), aponta um paradoxo nas taxas de homicídio por armas entre negros e brancos, de 2003 e 2014. Enquanto o número de vítimas negras desse tipo de violência subiu 9,9% no período, o de vítimas brancas caiu 27,1%. Os dados mostram que os negros morrem 2,6 vezes mais que os brancos por armas de fogo e que 94% das vítimas são homens.

Para o juiz Sidinei Brzuska, as mortes de jovens na periferia são ignoradas pela mesma mídia que dissemina o pânico quando a violência invade os territórios da classe média. “Sempre fizemos vistas grossas para as execuções que acontecem na periferia, porque interiorizamos a ideia de que ‘estão se matando entre eles’. O problema é quando esses crimes se deslocam para os bairros nobres, porque a classe média não quer cadáveres na sua porta”.

O bang bang saiu das vilas

No final de tarde chuvoso de quarta-feira, 26 de outubro, um dos piores pesadelos dos porto-alegrenses voltou a se materializar em pleno estacionamento de um dos locais de compra e lazer mais cultuados da capital pela sua localização, o shopping Praia de Belas, no cruzamento das avenidas Ipiranga com Borges de Medeiros, a meio-caminho entre o Centro e a Zona Sul. Por volta das 19h30, uma troca de tiros entre seguranças e dois assaltantes deixou todo mundo em pânico. O tiroteio foi o desfecho de um sequestro-relâmpago – modalidade de assalto na qual a vítima é levada como refém a caixas eletrônicos para sacar dinheiro – iniciado em outro shopping, o Bourbon da Avenida Ipiranga, na Zona Leste. Uma mulher foi mantida no interior de seu carro no estacionamento do Praia de Belas por um dos assaltantes enquanto outro entrou no shopping para fazer os saques. Assustada, a vítima tentou sair do veículo, o que chamou a atenção dos seguranças. Os ladrões pegaram outro motorista como refém e fugiram. “Desistimos de ir ao cinema. Não dá mais para viver nessa cidade”, desabafou mais tarde uma testemunha em uma rede social.

Além de uma série de 25 latrocínios (assaltos com morte) em um período de nove meses, demonstrações de violência extrema por facções do tráfico em zona nobres da capital explicam os nervos à flor da pele de boa parte da população. Porto Alegre figura em quinto lugar em latrocínios no país, conforme o 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

O caso de violência urbana mais recente fora da periferia da cidade ocorrera em 20 de outubro, na Zona Sul. O empresário Marcelo de Oliveira Dias, de 44 anos, foi vítima de uma emboscada armada por traficantes para eliminar um rival que chegaria em um carro branco ao estacionamento do supermercado Zaffari da Avenida Cavalhada. Ao estacionar seu Peugeot, que por coincidência é branco, o empresário foi morto com diversos tiros na frente da filha de quatro anos. Dias era dono de uma academia e fora fazer compras.

Em setembro, ao menos dois acertos de contas entre gangues aterrorizaram os porto-alegrenses ao evidenciarem que a guerra pelo domínio de territórios do tráfico estaria se deslocando da periferia para os centros urbanos e para locais em que a população se julgava a salvo das ações do crime organizado. No dia 19, Marlon Roldão, 18 anos, foi executado com diversos tiros diante de câmeras de segurança no saguão do terminal 1 do Aeroporto Salgado Filho; e na noite de 27 de setembro, entre os bairros Cidade Baixa e Menino Deus, Shaiane da Silva Machado, 17 anos, foi morta a tiros e arrastada por mais de 50 metros após ser atropelada pelos ocupantes de um automóvel Gol.

O Estado criminaliza as vítimas e produz mais violência

Pátio do Presídio Central em Porto Alegre reflete a crise do sistema carcerário brasileiro

Foto: ANADEP/Divulgação

Pátio do Presídio Central, em Porto Alegre, reflete a crise do sistema carcerário brasileiro

Foto: ANADEP/Divulgação

A crise da violência no Rio Grande do Sul não começou agora. Tem crescido há mais de 30 anos. Até hoje o estado não teve efetivamente um Plano de Segurança que reúna especialistas e gestores policiais para traçar uma estratégia conjunta, entre todas as organizações da segurança, unindo também o Executivo, o Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública, governos estadual e municipais. A avaliação é do advogado e mestre em Ciências Criminais, Alberto Liebling Kopittke, secretário de Segurança Pública e Cidadania de Canoas. “Cometemos os mesmos erros que se cometeu em São Paulo e Rio de Janeiro ao longo dos anos 1980 e 1990. A cada crime bárbaro o governo é pressionado, aumenta a pressão nas polícias e produz respostas pontuais, para apagar aquele incêndio. Mas ao mesmo tempo já surgem novos dez focos”, compara.

Para o juiz da Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre, Sidinei Brzuska, responsável pela fiscalização dos presídios na Região Metropolitana de Porto Alegre, o Estado não dispõe de estratégias para a área. “Não lembro de nenhuma política pública efetiva na segurança nos últimos 20 anos. Há sempre alguém de plantão para propor uma ideia que nunca tem continuidade, mas não políticas que perpassem governos. E o que se constata são as consequências da ausência dessas políticas”, constata.

Há uma década, a taxa de aprisionamento era de 130 pessoas para cada grupo de 100 mil habitantes. Hoje são 367/100 mil. “Eu pergunto: você se sente mais seguro hoje? No mesmo período em que quase triplicamos a taxa de encarceramento real, todos os crimes dispararam. Isso quer dizer que a simples prisão não impacta na criminalidade se não vier acompanhada de outras políticas”. A primeira providência do Estado quando ocorre um homicídio é identificar a vítima, a segunda, investigar se ele tem antecedentes. “Isso está errado. A segunda providência tem que ser a identificação de quem matou e não a criminalização da vítima”, contrapõe Brzuska.

Sidinei Brzuska, juiz da Vara de Execuções Criminais da capital

Foto: Igor Sperotto/Arquivo EC

Sidinei Brzuska, juiz da Vara de Execuções Criminais da capital

Foto: Igor Sperotto/Arquivo EC

“Para fazer o enfrentamento da violência, primeiro é necessário combater indistintamente qualquer tipo de violência, sem ser seletivo. Isso dá um freio. Hoje as pessoas estão liberadas para matar, porque não acontece nada. Esse não enfrentamento gera nas pessoas sensações de impunidade, de intranquilidade e de insegurança absolutas”, afirma.

Na sua opinião, a forma como o Estado pune o tráfico de drogas concorre para o aumento da violência. “Foi colocado na cabeça das pessoas reiteradamente que o tráfico é o vilão principal e que combatendo o tráfico combatemos todos os crimes. Essa política vem sendo adotada há 20 anos, ela não deu certo e o país ainda não se deu conta disso”, alerta. Brzuska também critica a cultura do encarceramento, que predomina nas políticas de segurança. “Prendemos muito e prendemos mal. Aumentamos nossa dívida pública mantendo pessoas encarceradas por crimes não violentos e, ao mesmo tempo, deixamos autores de crimes violentos soltos, aumentando a sensação de impunidade e de insegurança”. Para ilustrar, aponta que “o governo Sartori já prendeu 5,5 mil pessoas em 20 meses. Isso significa que deveria ter construído dez penitenciárias com 550 vagas cada uma, o que não foi feito”.

A grande prioridade para o sistema prisional deve ser os crimes contra a vida, defende Kopittke. “Por muitos anos, o RS não viu problema no fato dos homicídios estarem silenciosamente aumentando, porque esses homicídios ocorriam nas comunidades de periferia e o Estado não priorizava a investigação desses crimes com uma justificativa inaceitável: “estão se matando entre eles”. Na verdade, ali a violência estava iniciando a sua espiral de crescimento, por dentro da sociedade”, analisa.

Para o secretário, o Estado está preso a uma visão ultrapassada de segurança, totalmente reativa ao crime, sem um planejamento de médio e longo prazos com base no que efetivamente funcionou em outras partes do país e no mundo. “Nos anos 1990, os EUA criaram uma grande estratégia de repressão a homicídios e fortaleceram as equipes especiais de investigação de homicídios. Cada equipe investiga no máximo 20 homicídios por ano. No Brasil essas equipes possuem pouco pessoal e equipamentos e cada uma tem que investigar mais de 200 homicídios por ano, sem valorizar e fortalecer a perícia criminal e outras ferramentas tecnológicas como Banco de DNA e Banco de dados de perfil balístico”, acrescenta.

Jovens de baixa escolaridade são descartáveis

Com foco no tráfico de drogas, a prisão massiva de jovens acaba fortificando as facções

Foto: AGNPr/Fotos públicas

Com foco no tráfico de drogas, a prisão massiva de jovens acaba fortificando as facções

Foto: AGNPr/Fotos públicas

O acesso ao ensino é fator de sobrevivência nas periferias, afirma Sidinei Brzuska. Entre os jovens da faixa etária de 20 a 25 anos, aqueles com curso superior tem 65 vezes menos chances de irem para a cadeia do que aqueles que têm apenas o ensino fundamental e que são maioria no sistema prisional, 80%. Apenas 0,03% tiveram acesso à universidade. “É preciso aumentar a escolaridade quando esse jovem está com 10, 15 anos, pois do contrário ele vai ter apenas uma opção, que é o crime. Ele é jovem, sem instrução e desempregado e acaba sendo cooptado pelo tráfico porque ele é descartável; há milhares à disposição para fazer a segurança da boca, fazer o microtráfico e, com a mesma arma usada na vigilância da boca, ir pra rua para puxar carro, praticar o traficídio. Para mudar isso, precisamos de metas para a educação para as próximas décadas”, aponta o juiz da Vara de Execuções Criminais da capital.

De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, 1 milhão de brasileiros passa pelo sistema penitenciário do país todos os anos. Nos anos 1990, a população carcerária totalizava 90 mil pessoas. Pelos dados do Infopen, em 2014 já atingia 622 mil presos amontoados em casas prisionais em condições que não reabilitam ninguém devido às condições degradantes, superlotação, violência, guerra entre facções. E pela generalização, pois não há distinção entre presos de alta periculosidade, chefes do tráfico já condenados e autores de pequenos furtos. Pior, 40% são presos provisórios à espera de julgamento. A população carcerária, que cresce 7% ao ano, aumentou 83 vezes em 70 anos, de acordo com mapeamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com o apoio do Ipea e a partir de dados do Anuário Estatístico do IBGE. O total de apenados condenados no sistema prisional passou de 3,9 mil pessoas em 1938 para 321 mil em 2009.

“Se o Estado cumprir a lei, um preso vai custar de R$ 7 a R$ 9 mil por mês. Mas o Estado está parcelando salários. Se o funcionário que está cuidando desse preso ganha menos que isso, como pode dar certo? Então o Estado entrega o presídio para a facção criminosa, que vê o presídio como um empreendimento, a mesma visão que tem o empresário, e faz o jogo da sociedade, que quer ver a cadeia cheia de gente. Não ataca na prevenção. E as consequências são os cadáveres. Não tem solução no curto e médio prazos a não ser a repressão. É como combater a dengue caçando mosquito”, diz Brzuska.

As prisões são o principal fator da reprodução ampliada do crime

“As prisões brasileiras são um dos principais fatores da criminogênese moderna. Elas são instituições de reprodução ampliada do crime e da violência e o que as pessoas pedem? Mais prisões”, acrescenta o sociólogo e especialista em Segurança Pública pela Universidade de Oxford, Marcos Rolim. O sistema não funciona porque uma parcela dos funcionários tem articulações com o crime organizado e trabalha para ele. “Ainda que seja uma pequena parte, faz um grande estrago, pois viabiliza o tráfico de drogas dentro dos presídios e a venda de celulares e de facilidades. O sistema penitenciário faz de conta que não sabe disso e aí reside a maior responsabilidade dos seus gestores”. Para evitar a emergência de uma crise com os funcionários, os governantes preferem não enfrentar o problema.

“O tema da segurança pública passa pelo sistema prisional, que é cria de um Estado que prende indiscriminadamente e nunca chega nos culpados. Grande parte das pessoas envolvidas com o crime organizado permanece impune e apenas 4% da massa carcerária estão lá por terem matado alguém”, avalia o sociólogo. “O entendimento de grande parte da sociedade de que preso tem que sofrer criou espaço para as facções criminosas que dominam as galerias dos presídios superlotados. O Estado é conivente com o tráfico dentro dos presídios para evitar que os presos se rebelem e fujam. Só que essa conivência é contra o interesse público. No Brasil, criaram um escândalo, o Estado empilha presos e organiza o crime. O MP não fiscaliza, não impugna. É uma prisão ilegal. A opinião pública que sempre apoiou isso, agora está colhendo resultados. É necessário criar outro modelo de sistema prisional”, completa Rolim.

De acordo com o cientista político e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da Universidade de São Paulo, André Zanetic, cada vez mais a proporção de presos pela Polícia Militar aumenta em relação a de presos pela Polícia Civil, o que indica redução de prisões como consequência do trabalho de investigação. Na sua maioria, os presos são autores ou suspeitos de crimes menos graves que poderiam levar à prisão de grupos maiores e mais organizados se houvesse uma melhor investigação. “Entre as razões possíveis para esse aumento do encarceramento parece estar a forte motivação dos operadores do sistema de justiça, mas principalmente das polícias, em focalizar os esforços na efetuação de prisões. Não porque, a depender da situação, esta seja a melhor estratégia, mas porque este é um importante indicador de atividade policial. Não é possível generalizar, mas o grande aumento de abordagens que têm sido realizadas em vários estados pode ser visto como um indicador desse processo. A abordagem é um momento em que é possível a realização de prisões mais ‘fáceis’, principalmente relacionadas ao tráfico”, avalia. Zanetic vê com reservas a alternativa dos presídios privatizados. “Acredito que a iniciativa privada pode fazer muita coisa boa, mas trabalhar com presídios, tenho enorme desconfiança. Trabalhar com pessoas como um objeto, um objeto que a própria sociedade define apartar de si, não me parece bom”.

Política contra o tráfico é um fracasso, pois gera mais violência

Tiros no shopping

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O combate ao tráfico de drogas é um fracasso, afirma o juiz Sidinei Brzuska. Para ele, a forma como o Estado pune o tráfico de drogas estimula a violência e concorre para o aumento da criminalidade, porque leva apenas os subalternos para a cadeia. Não altera o mercado do tráfico. “Cada vez que o Estado prende um grande traficante, ele produz, por efeito cascata, diversos homicídios. O Estado precisa mudar a sua perspectiva de enfrentamento do tráfico. Ou cobra um imposto desse crime e regula as leis do mercado, ou acaba com o próprio mercado. Prender o funcionário e deixar a boca funcionando é um estimulador ao aumento da violência. E enche a cadeia. Metade da nossa população carcerária está presa por tráfico. Há 20 anos esse índice era de 5%”, compara.

Para o pesquisador da USP, André Zanetic, não é possível vencer a demanda que existe pelas drogas em nenhum contexto. “Ela sempre vai existir e vai construir o seu mercado. Independente da violência e das mortes, a oferta sempre estará ali, com novos jovens pobres, geralmente negros, exercendo seus papéis na hierarquia do tráfico, podendo almejar, na maior parte das vezes, uma vida curta, talvez curtindo uma espécie de sonho passageiro em que podem ocupar um espaço no qual são vistos no mundo, exercendo seus pequenos poderes. Em paralelo, é o que ocorreu nos Estados Unidos durante o período da Lei Seca, em que a violência só fez aumentar. É necessário construirmos urgentemente transformações nas nossas leis de drogas. Não é um processo fácil, mas é sem dúvida possível. Muitos países têm encontrado saídas para essa questão, passando pela descriminalização”.

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