OPINIÃO

Cidade Mãe da Gente

Elisa Lucinda / Publicado em 10 de setembro de 2000

Sentada na esquina da Luciano das Neves. A mesma rua que foi ao mesmo tempo a do colégio de freiras, das mordidas em hóstias que não sangravam, e a casa onde morei, pela primeira vez como sendo minha, donde fui a rainha indubitável daquele lar. Lá, o convento. Lá umas tardes de pernas de fora e eu com essa memória cheia de passados.

Meu desamparo me põe o coração ocupado demais: penso meu coração como uma lua, cuja luz que o define crescente é sempre a do amor; cuja escuridão que o define minguante é a da dor; cuja cheia é alimentada por uma pluralidade de esperanças de arrepiar; cuja falta de tudo é seu estado de lua nova por ter sido há pouco sempre morrida.

Vila Velha é um passado ao qual revisito como se tivesse fumado ópio. Como um negócio de alma. Uma referência.

Convento, moqueca, e minha mãe?

Ah, minha mãe é um buraco do tamanho da cidade. Do que foi cidade. Sem ela estão vazias todas as casas e todas as janelas e panelas de barro. Não há gente sem ela na minha cidade, não há moquecas. Há somente os peixes vivos do mar, os pássaros, as cigarras e seu estouro, o vento, as plantas. Fracassaram todos os asfaltos e progressos diante de sua morte. Toda sorte de carros e trânsitos e pontes foi-se embora com sua existência de pernas firmes e ligeiras por aqui. Não há cidade onde se viveu quando não há mais ali a mãe da gente. Não há mais cidade… Sua possibilidade é só de voltar a ser Terra.

O bar onde escrevo é fuleiro. Fuleira igual é minha alma de agora porque Drummond disse que memórias pessoais não servem à literatura. Fuleira literatura minha que desobedece a Drummond que é hoje também um retornado à natureza das coisas. À secularidade.

Abafado céu. Abafada menina que um dia desfilou na Luciano das Neves dentro do uniforme azul e branco no sol de sete de setembro. Abafada promessa que aquele coraçãozinho fez de ser feliz quantas vezes fosse possível.

elisalucinda@radnet.com.br

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