MOVIMENTO

O árduo caminho da democracia

Por Gilson Camargo / Publicado em 10 de setembro de 2000

Andrelino Pinto, 20 anos, está eufórico com a proximidade das eleições municipais de primeiro de outubro. No acampamento improvisado à margem do rio do Sinos pelas cerca de 20 famílias de índios caingangues que foram expulsas de suas terras no interior do Estado, ele exibe com orgulho o título de eleitor novinho em folha. Conta que abandonou a escola ainda na metade da primeira série para trabalhar na roça, mas agora já não tem mais terra para plantar. “Nossa cultura está desaparecendo, somos cada vez mais uma minoria”, constata.

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Foto:René Cabrales

Foto:René Cabrales

“Eu queria votar em gente que se interessasse pelos problemas do índio. Mas política é assim: ‘eles’ prometem tudo pra ganhar voto. Depois, quando se elegem, não cumprem nada”, sintetiza Andrelino. Como a maioria dos índios expulsos das reservas, o rapaz sobrevive da venda de cestos de vime nas cidades da Grande Porto Alegre. Capaz de sintetizar o misto de expectativa e desilusão de uma parcela da população em relação ao processo eleitoral, ele questiona: “Que democracia é essa que não consegue acabar com a pobreza?”.

“Vivemos uma aparência de democracia, que não diz respeito ao povo, não tem implicações na vida prática das pessoas”, interpreta Luis Milman, jornalista, professor de Filosofia e vice coordenador da pós-graduação em Comunicação da Ufrgs. A cultura democrática é matéria nova na América Latina, em especial no caso brasileiro, que vivia sob ditadura militar até a década de 80, observa. “Nossa experiência é tão incipiente que não nos autoriza a dizer que vivemos uma democracia. Jamais chegamos perto. O que temos é um sistema formal dominado por elites de todas as correntes que, quando chegam ao poder, são incapazes de propor um projeto para o país. Há um hiato entre a democracia das e para as elites. Este é um sistema que tende a entrar em colapso”, interpreta.

Eduardo Pedro Corsetti, professor de Ciência Política da Ufrgs, acredita que, além de um projeto social mais abrangente, é preciso contemplar os segmentos sociais de forma mais plena. “Não basta oferecer só emprego. A população está carente de um modo de vida mais seguro a médio e a longo prazo”, sinaliza. Para Corsetti, o PDT seria o único rival efetivo do PT porque conta com setores populares voltados para a produção de um projeto político de caráter social. Corsetti vê uma contradição na impugnação de candidaturas de pessoas semianalfabetas pelo TRE. “Eles são a outra ponta de um processo de exclusão. O fato de não ter educação formal não torna a pessoa incapaz de ser um administrador. Se o analfabeto pode eleger, por que não pode ser eleito?”, questiona. O número de eleitores analfabetos no Rio Grande do Sul é de 304.048 segundo os dados do TER.

Para o cientista político André Marenco, professor de Ciência Política da Ufrgs, o processo eleitoral é um exercício de afirmação da democracia. “Estamos pagando o preço de uma descontinuidade democrática. O tempo e muitas eleições são o único antídoto eficaz contra a ausência do senso de cidadania. Vivemos o período de maior sedimentação do processo eleitoral que é o caminho, ainda que longo, para um processo democrático mais aprimorado”, aponta.

Para além da disputa eleitoral e da retórica dos candidatos, Milman não vê distinção entre partidos de esquerda ou de direita no que se refere ao exercício do poder. “O governo anterior administrava interesses privados, era um autogoverno. O atual governa para um sentido corporativo, o que evidencia a ausência de um projeto social que contemple as demandas que já são conhecidas. Os setores conservadores e os progressistas se diferenciam no plano da retórica. Na prática, são iguais”. Na opinião de Milman, a democracia não criou instrumentos para responder aos anseios das pessoas simples, que são 90% da população, o que faz com que as crises na Educação, na Saúde, na Segurança e Habitação se sucedam sem que surjam projetos de reestruturação desses setores. “As pessoas comuns vão lutar pela democracia quando ela fizer sentido. O povo aplaude porque o povo quer respostas. As nossas elites políticas são incapazes de responder por um projeto nacional. Por isso assumem um distanciamento da vida das pessoas. Administram a crise com conchavos palacianos”, dispara.

Pela primeira vez na história do Rio Grande do Sul, uma eleição municipal será disputada com a inversão de papéis entre situação e oposição. A eleição de Olívio Dutra e a ascensão do Partido dos Trabalhadores e demais siglas coligadas da Frente Popular ao poder mudou o cenário político do Estado a partir de 1998.

Partidos como PMDB, PTB, PFL e PPB, mais afinados com uma postura conservadora de quem sempre se revezou no poder, foram obrigados a mudar a retórica. “Estamos condenados a fazer oposição”, lamenta Celso Bernardi, presidente estadual do PPB. “Estar no poder é uma situação bastante nova, mas favorável. Temos um projeto político popular que está em execução concreta. Esse é um debate que vai aparecer muito durante a campanha nos municípios”, prevê o deputado estadual Selvino Heck, vice-presidente do PT.

O presidente estadual do PMDB, Odacyr Klein, que já foi ministro dos Transportes, mostra desenvoltura no papel de posição. “Ser governo só traz desgaste para o PT. Os candidatos do governo terão que se justificar mais. Quem está no poder pode usar a máquina pública mas, por outro lado, tem que dar discurso para a oposição”, alfineta Klein, explicando que a orientação do PMDB é para que os seus candidatos trabalhem em cima das características dos município para minimizar o impacto do Orçamento Participativo estadual e convencer o eleitorado a votar na oposição, no caso, os candidatos do PMDB e partidos coligados. “Não vamos adotar somente um discurso de oposição. A estratégia é apresentar propostas e candidatos afinados com a realidade local de cada cidade”, despista. “Quem usar a máquina pública será expulso do partido”, responde Marcel Frison, tesoureiro do PT estadual.

“O partido local vai ter que dizer por quê é contra o Orçamento Participativo, enquanto que o PT chegará no eleitor de forma mais ofensiva, já que essa é uma proposta consolidada do ponto de vista político: a população já conhece o funcionamento da máquina depois de mais de 600 assembleias realizadas no Estado”, argumenta o deputado petista, revelando que a meta do partido é eleger prefeitos em nada menos que 400 municípios. “O PT sabe fazer oposição e sabe governar. O nosso objetivo é claro: ser o partido mais votado no Estado”, ambiciona Heck.Desde as últimas eleições municipais, em 1996, o eleitorado gaúcho cresceu de 6.594.884 para 7.112.134 pessoas aptas a votar, em 497 municípios. O balanço, divulgado pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE), exclui os eleitores de municípios criados depois de dezembro do ano passado e que estão com o processo de emancipação tramitando na justiça. O TRE registrou um total de 26.454 candidaturas a prefeito e a vereador no Estado.

No confronto partidário, inversão de papéis: PT como situação

Foto:René Cabrales

No confronto partidário, inversão de papéis: PT como situação

Foto:René Cabrales

Em julho, o Tribunal de Contas do Estado repassou ao órgão eleitoral uma lista de 204 prefeitos, vice-prefeitos e secretários municipais inelegíveis por conta de irregularidades nas contas de suas administrações municipais. Entre os inelegíveis estão 16 prefeitos, como o de Feliz, Clóvis Assmann (PMDB); de Rosário do Sul, Glei Menezes (PDT) e Olmiro Vieira (PPB), de Lagoão. Os nomes incluídos são considerados inelegíveis pela Justiça Eleitoral pelo prazo de cinco anos, a contar da publicação dos processos no Diário Oficial da União. Mesmo apontados como maus administradores, podem recorrer da decisão junto ao TRE o que, na prática, os torna elegíveis no dia 1º de outubro. É o caso de Assmann e Menezes, que são candidatos à reeleição. Conforme o Tribunal de Contas da União, há no país 1.651 nomes inelegíveis por má gestão das contas públicas. Em Porto Alegre, 42 nomes já foram impugnados pelo Ministério Público Eleitoral.

De acordo com o promotor eleitoral Gilmar Maronese, coordenador das Promotorias Cíveis de Porto Alegre, as irregularidades nas contas públicas são mais assíduas e difíceis de fiscalizar no interior do Estado e na Grande Porto Alegre. Em Esteio, por exemplo, o Ministério Público propôs a inelegibilidade de 28 candidatos, ou dez por cento dos 280 postulantes a cargos públicos do município. “Nem todos os casos são de corrupção e os implicados sempre podem recorrer”, ressalva Maronese. Segundo o promotor, há 500 agentes públicos no serviço de fiscalização prévia às eleições. Conforme o presidente do Tribunal de Contas do Estado, Hélio Saul Mileski, que conta com dois mil agentes para fiscalizar quatro mil unidades orçamentárias no RS, o número de impugnações estaria dentro da normalidade. “Não chega a causar preocupação porque são nomes que tiveram contas rejeitadas nos últimos cinco anos e nem todos estão envolvidos em falcatruas. Há rejeições por vários motivos. Mas, pedagogicamente, o TCE age com extremo rigor para cessar a prática de irregularidades”, argumenta Mileski.

De olho numa fatia cada vez maior do eleitorado do interior do Estado, o Partido Progressista Brasileiro (PPB) promete desequilibrar a disputa entre a Frente Popular e o PMDB. Em 1996, só perdeu para o PMDB no número de vereadores eleitos. Fez nada menos que 1.418 vereadores (contra 1.371 do PMDB, 983 do PDT e 360 do PT) e 142 prefeitos (nas últimas eleições municipais o PMDB elegeu 158, o PDT, 84 e o PT, 25 prefeitos) e totalizou 2,3 milhões de votos. “O PMDB vai decrescer e o PPB, assim como o PTB, tende a crescer em termos numéricos”, admite Selvino Heck.

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Foto: C.S.

Foto: C.S.

Coligado em 423 municípios (com o PMDB em 80 cidades e com o PTB em outras 50) e concorrendo com candidatos próprios em 74, o PPB, corrente política que um dia já se chamou Aliança Renovadora Nacional (a Arena, partido de situação do regime militar brasileiro a partir de 1964) e também já foi Partido Democrático Socialista (o PDS, que sucedeu à Arena como coadjuvante da ditadura militar) quer “ampliar o seu patrimônio político”, como diz o presidente estadual da sigla, Celso Bernardi.

O partido conta com uma receita mensal de R$ 900 mil, oriunda de fundo partidário e contribuições dos filiados, uma verba que, segundo Bernardi, não contabiliza as doações de campanha. A estratégia para tirar votos da Frente Popular, explica, é bater com força nas contradições que o PPB vê no governo e no PT. “Agora vêm com essa história de que não pode coligar com partidos que não sejam da Frente Popular. Querem globalizar as eleições municipais”, ironiza Bernardi. “Nunca um governador desmentiu tanto um candidato. Seduziram o eleitor com promessas que hoje guardam um abismo com a realidade como o congelamento dos impostos, a criação da universidade estadual e a cesta básica”, dispara.

Em maio deste ano, a executiva estadual do PT registrou em cartório a política de alianças definidas em nível nacional e ameaça intervir nos municípios em que foram feitas coligações com o PMDB (São João da Urtiga, Três Cachoeiras, Marau e Braga), com o PPB (Áurea e Capão Bonito) e com o PTB (Santo Antônio da Palma). O PT disputa prefeituras em 404 municípios, com 283 candidatos a prefeito e 3.200 candidatos a vereador.

Dos 44 postulantes a cargos de vice-prefeito, seis têm na cabeça-de-chapa candidatos do PSB e 38 do PDT. São 116 coligações com o PDT, 60 com o PSDB e 21 com o PC do B. No páreo das eleições municipais de 1996, os azarões foram o Partido Republicano Progressista (PRP), que obteve apenas 2.931 votos para prefeito; e o Partido Social Democrata Cristão (PSDC), integrante da coligação Vamos Abraçar Porto Alegre, que concorre à prefeitura da capital com a deputada Yeda Crusius: o PSDC não registrou votos nas últimas eleições.

Berço do Orçamento Participativo, Porto Alegre, que é governada pela Frente Popular há 12 anos, é o filão mais cobiçado nesse confronto – polarizado entre PMDB e PT. Um debate sobre Segurança, Saúde, Direitos Humanos, Transporte e Educação, agendado para o final de agosto pela Câmara de Vereadores entre os candidatos Alceu Collares (PDT-PTB-PMN-PTN), Tarso Genro (PT-PSB-PC do B-PCB), Valter Nagelstein (PPS), Germano Bonow (PFL-PSC-PSL), Yeda Crusius (PSDB-PPB-PSDC) e Cézar Busatto (PMDB-PL) teve que ser cancelado porque não houve acordo entre os partidos.

De acordo com o deputado Berfran Rosado, coordenador da campanha de Cézar Busatto (PMDB-PL), o confronto na capital é aberto e visa desestabilizar a principal bandeira da Frente Popular: o Orçamento Participativo. “Com o ‘Cidade Viva’, o PT vem com uma campanha poderosa e milionária no rádio e na TV há dez anos. Só em abril deste ano, a receita do programa foi de R$ 1 milhão”, ataca. Para Rosado, o governo estaria “se apropriando das mazelas da população” através do OP. “No primeiro debate, Tarso Genro admitiu que o governo está devendo 400 obras definidas pelo OP em 12 anos, ou o equivalente a um ano de obras”, enumera o deputado. A estimativa de gastos do partido com a campanha em Porto Alegre é de R$ 1 milhão. Segundo a assessoria técnica do PT, os custos do Cidade Viva em abril desse ano foram de R$ 541.914,45 em publicidade e produção de rádio e TV. Em 12 anos, foram entregues 2.725 de um total de 3.138 obras definidas pelo OP. As outras 411 estariam em andamento e em fase de conclusão.

A jornalista Vera Spolidoro, coordenadora de comunicação da campanha de Tarso, diz que a estratégia do candidato é levar o debate para a valorização das realizações da FP na prefeitura e propor avanços em todas as áreas. “A idéia é debater as questões nacionais mostrando a distância que existe entre o governo federal e os 12 anos de administração do PT em Porto Alegre”, revela. A verba da comunicação da campanha é de cerca de R$ 800 mil, segundo a coordenação.

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