Diretamente associadas ao poder e com as facilidades tecnológicas, quadrilhas aumentam suas atividades no estado e deixam preocupadas as autoridades encarregadas da segurança pública. Impaciência da sociedade com as máfias faz CPI virar palco de disputas políticas.
Um número, dos tantos números estatísticos produzidos durante a CPI do Crime Organizado na Assembléia Legislativa, é a melhor forma de demonstrar a permanência das quadrilhas e máfias no mundo de hoje: o disque-denúncia, telefone instalado pela comissão para receber informações anônimas da sociedade, registrou mais de 900 chamadas em menos de três meses de funcionamento. Fazendo as contas, são mais de dez ligações com denúncias por dia, incluindo aí sábados, domingos e feriados. O crime organizado, expresso em esquemas que apenas começam a ser investigados, arraigou-se de tal forma que é difícil combatê-lo por métodos tradicionais. Os criminosos descobriram na tecnologia um aliado de peso.
E a sensação é de que a CPI – instalada no início de março com o objetivo de desvendar as conexões gaúchas do narcotráfico – transbordou para fatos e histórias bem complexas, como a recente formação de quadrilhas especializadas em roubos virtuais. Esses grupos são exemplos de como atuam os criminosos em plena globalização: os ladrões atuam em todo o país, efetuando saques nas contas correntes via internet, e pelo menos dois suspeitos foram detidos no Rio Grande do Sul.
O procurador de Justiça que coordena a força-tarefa de 68 pessoas, empenhada na investigação de atividades criminosas no estado, Mauro Renner, não tem dúvida de que funcionários de bancos estão agindo em conjunto com a quadrilha. “Pelo menos oito pessoas deverão ser denunciadas por esta prática”, adianta Renner.
A sociedade com autoridades e pessoas influentes é a barra de sustentação das quadrilhas no mundo moderno. O secretário José Paulo Bisol, da Justiça e Segurança, evita comentar dados recolhidos pela CPI, mas não esconde que o crime organizado só pode existir com a participaçãodo Estado, ou seja, com o suporte de especialistas e autoridades de cada área, sejam eles policiais, juízes, parlamentares ou simples bancários. “Não há crime organizado no mundo sem isso”, diz Bisol.
Foto: René Cabrales
Na área do narcotráfico, o requinte das quadrilhas é ainda maior. Elas utilizam pequenos aviões para descarregar cocaína em solo gaúcho. Regiões de fronteira e o litoral Sul são as preferidas pelos traficantes, que se comunicam por rádios comprados em qualquer casa que comercialize produtos de
telecomunicações no estado e têm entreseus sócios – segundo uma testemunha já ouvida pela CPI
– delegados da Polícia Civil. “O Rio Grande do Sul faz parte de uma rota internacional do tráfico de drogas, tendo inclusive a colaboração de autoridades”, revela o comandante da força-tarefa. O estado recebe mais de uma tonelada de cocaína por mês.
A droga, antes de chegar ao Brasil, passa pela Bolívia e Paraguai e entra no país pelo Mato Grosso. A denúncia que mais impressionou os integrantes da CPI foi a do comerciante Pedro Luís Ferreira de Aguiar. Ele acusou policiais e delegados da Delegacia Especializada em Furtos, Roubos, Entorpecentara comprar cocaína. A procedência da droga, segundo Aguiar, era a Bolívia.
Também foram encaminhadas mais de 60 denúncias, até agora, referentes a roubos de cargas e caminhões. A mais grave refere-se a uma quadrilha que atua na serra gaúcha. Pelo menos duas testemunhas confirmaram aos deputados que vários agricultores foram vítimas da compra de caminhões roubados. “São quadrilhas que deixaram de assaltar bancos para roubar cargas”, afirma o deputado Francisco Appio (PPB), relator da CPI. Alguns caminhoneiros desapareceram após descobrirem o golpe. A CPI também apurou a existência, no estado, de 400 veículos de carga com placas falsas, clonadas ou inexistentes. O assessor técnico do Detran, André Luis Pinto, prometeu que o órgão vai abrir inquérito para investigar as irregularidades.
Mas depois de dois meses e 15 dias de trabalho, mais de 40 depoimentos e seis pessoas presas, os deputados oposicionistas da CPI do Crime Organizado entraram em choque com a ala governista da comissão. A polêmica é mais política que qualquer outra coisa: o relator da CPI sugeriu uma nova dinâmica nas sessões para acabar com depoimentos repetitivos de traficantes e informantes da polícia, que estariam desviando a investigação do narcotráfico, roubo de cargas e lavagem de dinheiro para a atuação das polícias civil e militar no estado.
O alvo das queixas é a secretaria estadual de Justiça e Segurança. “Lamento que, nas últimas semanas, as investigações tenham ficado circunscritas apenas à polícia, desprezando outras denúncias graves que recebemos”, afirma Appio. Das seis pessoas presas até agora como resultado das investigações, quatro são policiais e estão detidos devido ao envolvimento explícito com o tráfico de drogas.
O presidente da CPI, Paulo Pimenta (PT), discorda da tese de perseguição à polícia civil. “Não podemos abdicar de investigações só para não prejudicar policiais”, rebate o deputado. O parlamentar justifica que é normal a prisão de um policial ganhar mais destaque do que a de um traficante por ser um fato inusitado. Apesar das críticas, Pimenta garante que o trabalho da comissão não sairá prejudicado no estado. Para acirrar os ânimos, o chefe de polícia do Rio Grande do Sul, delegado José Antônio Araújo, declarou que alguns deputados têm ligações com banqueiros do jogo do bicho. O próprio delegado tratou de enviar uma carta à presidência da Assembléia desmentindo a frase.
Os mais de cem depoimentos colhidos até agora foram obtidos graças à lei de Proteção às Vítimas e Testemunhas. “Não se combate o crime organizado sem lei de proteção” , diz o procurador de Justiça Mauro Renner. O coordenador da força-tarefa salienta que a lei ainda é tímida, já que protege mais as vítimas do crime do que as pessoas que decidem testemunhar. “É preciso adequá-la, mas é evidente que, sem esta medida, o nosso trabalho ficaria muito prejudicado”.
Com tantas informações para checar, os integrantes da CPI decidiram prorrogar os trabalhos – que encerram no início de junho – por mais 60 dias. Com a modernização do crime, os deputados terão ainda muito o que descobrir. “É necessário unirmos forças no Rio Grande do Sul para combater a criminalidade. Por isso, mesmo após o encerramento da comissão, a força-tarefa vai continuar atuando”, anuncia o procurador de Justiça do estado. A sociedade gaúcha agradece.