OPINIÃO

Trem inteiro

Veríssimo / Publicado em 21 de abril de 2000

O presidente e a dona Ruth têm uma rara noite de sossego no Palácio da Alvorada. Ele lê os jornais, ela lê um livro ou cerze meias. Ele:
– Ouça isto, Ruth. Incendiaram um trem.
– Quem?
– Os passageiros. Ficaram irritados porque o trem quebrou e tocaram fogo.
– No vagão?
– Não, no trem inteiro. Olha, tem uma foto.
– Que coisa!
– Imagina o grau de irritação das pessoas para chegar a esse ponto. Não depredaram a estação, não incendiaram um ou dois vagões. Incendiaram um trem inteiro.
– Que horror.
– Aliás, pode-se deduzir muito da notícia. Assim, numa projeção sociológica. Para começar, não deve ter sido a primeira vez que o trem quebrou. Não se incendeia um trem inteiro por uma irritação passageira. A revolta só pode ter sido resultado de um acúmulo de irritação com repetidos incidentes do mesmo tipo. Isto mostra o quê? Falta de verbas para o transporte coletivo. No caso da ferrovia ser privatizada, desleixo e falta de fiscalização do governo. Tudo denotando o quê?
– Desprezo pelo público. Pouco caso com os serviços básicos a que o povo tem direito.
– E mais. Não se incendeia um trem inteiro porque o trem quebra, mesmo que quebre muito. Por isso se incendiaria, no máximo, meio trem. O trem inteiro é uma revolta contra muito mais. Contra o salário baixo, contra a falta de perspectiva, contra o desprezo generalizado… E ninguém parece dar muito importância à notícia. Um trem inteiro, Ruth!
– Calma, Fernando. Isso tudo tem muito a ver com cultura. Há uma cultura de desprezo pela classe mais baixa, é uma tradição. Fatos como esse são comuns.
– Eu sei, mas um trem inteiro…
– Ainda bem que você não vive lá, senão ia se impressionar todos os dias.
– Lá onde?
– Na índia, ora.
– Que índia?
– Esse trem incendiado, não foi na índia?
– Não, Ruth. No Brasil.
– Ah.
Silêncio. Depois:
– Ainda bem que você não vive lá também.

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