Eu acordo magra. Acordo alta e fina. Não que eu durma baixinha e gorda, mas sempre acordo menos cheia da que foi deitar-se para esta manhã. Ontem, fui dormir com trinta e oito anos pela última vez. Gostei deles mas queria ter brincado mais. Eu gosto quando não acaba a brincadeira.
Amanheceu um domingo azul. Recortado pelo verde das montanhas parece até encomenda. O mar também veio com seus escândalos de anil… Só minha mãe não compareceu ao calendário de hoje. Todos os anos ligava e era o mesmo ritual: Filha? Feliz aniversário. Você está quase nascendo. Já estou sentindo as contrações. E gargalhava na brincadeira materna. Me lembro, filha, que era domingo. Eu estava passando batom para ir ver os blocos, o desfile, quando senti a primeira contração. E depois a outra e mais outra… Larguei batom e seu pai me levou direto para a maternidade. Fiquei lá lendo umas revistas que seu pai comprou pra mim. Cê acredita?
Sim, porque foi chegar lá pra neném não dar sinal mais de nascer. Só foi nascer ao meio-dia, a danadinha. Linda! Não é por ser minha filha não, mas nasceu linda. Duas pedrinhas azuis no lugar dos olhos. Ai, parece que estou vendo. Depois é que seus olhos ficaram verdes. Seu pai com você no colo se exibindo pros amigos médicos e enfermeiras. Todo bobo seu pai. E você era a cara dele. O homem chegava tá mole. E eu feliz que só vendo.
Você saiu sem me doer. Quando decidiu, veio. Saiu sem me sacrificar. Lá fora a gente só ouvia a banda da janela, os mascarados à tarde, a gente via. Feliz aniversário, filha!
A poesia de minha mãe era essa. Cotidiana. Costurada por dentro da palavra conversa e da palavra dia. Eu adorava ouvir essa história do meu nascimento pela voz dela e ia a cada ano descobrindo um novo detalhe dentro da narrativa. Aquela voz no meu ouvido a me contar que tinha cheiro vermelho de rouge, parecia um peito bom na minha cara e no meu ouvido.
Hoje é domingo azul de sol e carnaval outra vez. Nem sempre é domingo e carnaval e aniversário acontecem juntos. É só de vez em quando. Hoje é uma dessa vez. E passo batom em mim. Essa bandinha de bairro, bandinha de pracinha com esses senhores tocando “Cidade Maravilhosa” tem um jeito especial de encher meus olhos de lágrimas e ao mesmo tempo partir-me o peito. Vem na boca o gosto de toda a folia na adolescência em Jacaraípe com serpentinas pontuando a história.
Vou pintando os olhos vestindo a fantasia. Aquela conversa de minha mãe era uma bandinha de carnaval no meu ouvido. Hoje é domingo e aniversário. Minha mãe não ligou. No meu peito a clarineta, o tarol, o sax, o bumbo, toda a banda inteira do meu peito toca “Mamãe eu quero.”
*Elisa Lucinda é atriz e poeta