Decididamente os livros fazem pontes insuspeitáveis, que proporcionam reflexões a um só tempo sobre a literatura e o mundo real. Sem dúvida é o caso deste ensaio da professora de Filosofia e antropóloga Maria de Nazareth Agra Hassen, elaborado a partir de pesquisa de campo no Presídio Central de Porto Alegre entre 1993 e 1994 e amparado por uma exaustiva revisão bibliográfica.
O resultado desta empreitada, transformada em livro, “O trabalho e os dias – ensaio antropológico sobre trabalho, crime e prisão”, pela Tomo Editorial/Ventura Livros, chama a atenção não pela novidade do tema e nem pelas conclusões a que chega, mas pela reincidência de questões sociais tão complexas quanto urgentes há muito tempo.
Se aceitarmos a imprecisão conceitual de que a literatura é uma espécie de grande metáfora da vida vivida ou projetada, quando se fala de prisão, crime e trabalho não há como ignorar o formidável e clássico “Os miseráveis”, de Victor Hugo. Criado sob o auge da estética romântica como expressão crítica nos quadros de um capitalismo ascendente, o protagonista João Valjean encerra um paradigma válido sobre as noções do crime, do sistema prisional e do trabalho. Sua trajetória e seu fim são inevitavelmente românticos, é claro, mas o subtexto é tão universal que coteja o ensaio da professora gaúcha.
Um século depois, as desmedidas da personagem de ficção – em uma perspectiva aristotélica – ainda reproduzem, guardadas todas as proporções possíveis, as incongruências morais ou simplesmente lógicas de uma sociedade que segrega os infratores, mas tem no crime e no sistema de punição, digamos assim, um elemento imprescindível à operacionalidade desta mesma sociedade. Este é um dos aspectos levantado em “O trabalho e os dias…”.
O que surpreende, ainda mais que a obra está isenta de uma simplória denúncia política, mas tem um caráter científico, é a constatação de que o sistema prisional estudado – como de resto em todo o país – possui uma dinâmica perversa como se o mundo social em nada tivesse avançado nos últimos 100 anos. As orientações que presidem não só a determinação de penas como a privação da liberdade e o recurso do trabalho como mecanismo de “ressocialização” se referem a pressupostos teóricos e jurídicos anteriores a idéias como os direitos humanos. As palavras podem ser contemporâneas, porém os sentidos são arcaicos e improdutivos, se considerarmos com seriedade as estratégicas para a “recuperação” dos apenados.
Com perspicácia, Maria Nazareth Hassen identifica a ineficiência não só do trabalho dentro da prisão, mas a própria pena de privação da liberdade como instrumento de “recuperação” do criminoso. “…Como preparar para a vida livre mantendo preso? É como preparar um atleta para uma corrida deitando-o numa cama.” Contudo, a pesquisadora reconhece que o desafio de encontrar uma alternativa melhor do que a vingança e a exploração dos infratores consiste em um desafio da sociedade, que molda o Estado e sua instituições de acordo com sua imagem e semelhança.
“O trabalho e os dias – ensaio antropológicosobre trabalho, crime e prisão”
Maria deNazareth Agra Hassen,
246 pp. TomoEditorial/Ventura Livros,
R$ 22