A gente fala na emergência social brasileira, mas é uma imprecisão semântica. “Emergência” dá a idéia de coisa inesperada, de anormalidade súbita. E não se chega a uma situação como a da Febem de São Paulo de repente. Ela é construída aos poucos – é uma obra, literalmente, de gerações. O embrutecimento a este ponto de uma sociedade não acontece, assim, por uma mudança dos astros ou outro acidente alheio à nossa vontade ou longe do nosso controle. É um trabalho humano, consciente, o resultado de anos e anos de decisões adiadas, de coisas não feitas e desconversa. Qualquer estudo sobre a responsabilidade do patriciado brasileiro no horror que o cerca acaba sendo um estudo sobre os usos da fatalidade. A fatalidade é o álibi, a fatalidade é a desculpa, a fatalidade, no fim, é a explicação de tudo – não só das misérias reicidentes que resistem a todas as nossas boas intenções, mas dos arranjos políticos, da subserviência econômica, até do caráter nacional, ou de tudo entendido e subentendido na frase “O Brasil é assim mesmo”.
O fatalismo dominante cria a fatalidade, este é o terrível círculo viciado em que vivemos. Só um fatalismo congênito, ou uma cultura fatalista, justifica o inferno carcerário como o que persiste no Brasil, uma das nossas tantas “emergências” eternamente sem solução. Só uma visão fundamentalmente pessimista da condição humana explica que a oitava economia do mundo, o país que festeja a sua própria excepcionalidade e criatividade em tantas outras áreas, descuide assim da sua saúde pública e do seu sistema penal, justamente as áreas em que a condição humana sofre sua martirização na carne, no contato direto com o poder com o poder impotente de regenerar do Estado. Nos postos de saúde, nas cadeias e nas Febems do Brasil os brasileiros de pouca sorte são submetidos a um teatro permanente de purgação, para dar razão à resignação fatalista.
A saúde pública é um escoadouro de dinheiro sem conseqüência e o sistema penal é esse horror crescente porque há uma força maior do que as nossas, uma danação que derrota qualquer vontade. É a fatalidade, o que se há de fazer? O Brasil é assim mesmo.
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Para começar, metade do seu ministério está ou esteve em Paris nos últimos dias, sob vários pretextos. E o Itamar já foi embora! O outono em Paris é seu próprio pretexto, eu sei, mas você podia dizer que veio porque ficava mais barato reunir o ministério no andar de cima da Lipp do que chamar todos de volta a Brasília. Há tempo defendo a tese de que Brasília deveria ter sido construída em Paris. Adistância do Brasil é a mesma, com a vantagem de que há um oceano no meio, dificultando as marchas de protesto e as fugas dos parlamentares às quintas. E há semelhanças entre as duas cidades: há pouco descobriram que o prefeito daqui, o Tiberi, é uma espécie de Roriz, só mais engomado.
Ou então esquece Brasília, renuncia e vem. Nossos amigos comuns – o Pedreira e a Monique, o Reali e a Amélia – estão cada vez mais simpáticos, e o Calvados do Reali vem direto da Normandia. Há uma excelente mostra do Daumier, o Chico e o Paulo Caruso da sua época, no Grand Palais, e ontem inaugurou-se a mostra do barroco brasileiro no Petit Palais. Outro motivo de orgulho brasileiro em Paris, e imperdível, é a peça com a Cristiana Reali e o Francis Hunter, Duo pour Violon Seul, mais uma prova, como se precisasse, de que a Cristiane não é apenas um rosto bonito. Que atriz! Meu francês é precário – toda vez que eu falo francês, a Academie faz uma reunião de emergência -, mas não é preciso entender tudo para se emocionar com a Cristiane.
É verdade que nem tudo está perfeito por aqui. Há o lado sombrio. Descobri que no Taillevent a canette, que antes vinha em dois serviços – as coxas eram trazidas depois, preparadas de outra maneira -, agora vem num serviço só, uma prova de que a globalização não está dando tão certo assim. Há manifestações diariamente, mas todas respeitam o horário marcado, os ônibus podem anunciar suas mudanças de itinerário com antecedência, tudo se organiza à sua volta e, além do mais, nenhuma é contra seu governo. Larga esse negócio e vem, Éfe Agá. A História compreenderá. Ou então traga o resto do ministério e instale logo o seu governo aqui.
Infelizmente, eu não posso ficar. Helás, como dizemos na Rive Droite, as folhas que tinham que cair das árvores já caíram e a minha função, que era fiscalizar o processo, acabou. Mas você não tem essas limitações. E se é para viver longe da realidade, não existe lugar como Paris.