OPINIÃO

Nega Cabo Verde

Elisa Lucinda / Publicado em 23 de novembro de 1999

Na Cinelândia tudo pode acontecer. Me lembro de pombos sobrevoando as construções do velho Rio. Meus olhos encantados sobre as pernas que tinham vindo aparentemente passear. Me lembro delas muito finas na parte das canelas, dos cambitos, andando ligeiros e ritmados debaixo do godê da saia. Linda tarde e eu tinha uma satisfação daquelas que a gente não sabe bem o motivo, mas que dá um gosto bom na boca.

Uma salivação de nada que parece ter um profundo sentido, embora calmo. Parecendo paz. Na contramão da calçada meus olhos avistaram uma imagem como se fosse cinema: vinha vindo um homem muito velhinho parecendo ter quase um século de vida; de fraque e um pincenez na mão direita junto ao rosto lustrando o chão da cansada vista, embaçada visão. Ao lado esquerdo dele, segurando seu braço para garantir a firmeza do passo, um rapazola que parecia um damo-de-companhia acompanhando aquele vulto histórico. Eu estava extasiada com aquela visão. Fomos ficando cada vez mais próximos e o prazo da calçada entre nós foi diminuindo, até que Deus, esse incansável cineasta, nos colocou frente a frente.

A primeira fala era do velhinho: “Ah, deixa eu pegar, que maravilha, que raridade.” Falava com voz trêmula, olhos arregalados, apertando a luneta na borda dos vívidos olhos. Seu olhar era fixado nas minhas canelas, nos meus tornozelos. Engoli a saliva que era calma mas que agora mudava para gosto de espanto, medo e curiosidade. Não conseguia dizer nada. Uma espécie de memória antiga descia seco pela garganta. “Deixa eu pegar, eu preciso.”

Sem pensar e sem me importar se os outros reparavam no espetáculo, dei meu tornozelo na mão dele. O velhinho fechou os olhos como quem goza e continuou: “Veja, cabe na minha mão! Encostou folgado a ponta do anelar na do polegar!” A expressão do rapazola era também de estranhamento; ele sim, parecia não entender nada, mas era pra ele que o velho falava.

Eu em um pé só na mão do homem. Que loucura. “Isso é nega Cabo Verde! Isso limpa casa, isso canta, isso pinta. Tá pensando o quê? Isso não é pra canavial não. Isso aprende língua, isso brinca com as crianças, isso tem bom ventre… Ah, meu filho, isso duura…”

Fiquei besta. Tirei meu pé de papagaia das mãos daquele lôro e vim pensando nele, coitado. Que saudade que ele tinha da escravidão. Achava que estava ainda no mercado de gente. Era um morto vivo que já não podia fazer mal a ninguém.

Quanto a mim, voltei serenamente à minha salivação de paz, cheia de planos na cabeça. Gostei em especial daquela parte: “Isso duura…”

* Elisa Lucinda é atriz e poeta

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