Ao evocar o passado, qualquer que seja o tema, dificilmente me escapo de começar por minha cidade natal, Piratini, que tão amorosamente ofereceu chão e seiva para que eu fincasse raízes. Agora mesmo, quando dos espetáculos teatrais do 6º Porto Alegre Em Cena, ao me dar conta eu já estava entrando no palquinho do Grupo Escolar, onde a turma era ensaiada para o festival de encerramento de ano letivo. E dali pulei para o umbral da igreja matriz, onde praticamente a mês a turma – vivendo pastores bíblicos e acrescida de um burro e uma vaquinha -ajoelhava- se no presépio-vivo da noite de Natal. Aliás, certa vez o Clayr escandalizou a platéia ao ficar de mãos postas olhando para ela ao invés de olhar para manjedoura e depois justificou-se dizendo que, se o mundo inteiro adorava Jesus, era hora de alguém fazer nem que fosse uma adoraçãozinha passageira ao nobre povo de Piratini. Criança tem cada uma!
Uma outra evocação grudenta vai aos anos 50, quando Paixão Côrtes e eu, depois de termos pesquisado e recriado as danças gaúchas, precisávamos divulgá-las. Funcionário estável da Secretaria de Agricultura, ele não podia se afastar de Porto Alegre e então tocou para mim (semi-gaudério apelidado free-lancer) o desafio de encontrar no Rio ou em São Paulo um cantor que gravasse as melodias. Em São Paulo, consegui o apoio da Inezita Barroso e da gravadora Copacabana, que lançou um LP através do qual já era possível “ouvir” as danças. Mas como “vê-las”? Com figurantes da TV Record montei um grupinho e levei ao ar, por primeira vez, o Pezinho & Cia. Por fim, estreei no teatro de Arena um espetáculo em que o peão “Zacaria” difundia o linguajar campeiro e os peões “Cesário” e “Gateado” se estranhavam e puxavam das adagas para um feio duelo, em boa hora substituído por um desafio de chula que indicaria qual o melhor dos dois eserviria de pretexto para o início do desfile das danças em geral. Sucesso de crítica e público, graças a Deus!
Então sonhei alto e imaginei meu elenco partindo para Porto Alegre e mostrando, também para o público sul-riograndense, a beleza das danças típicas gaúchas. Apenas modifiquei parte do elenco: embora conservando duas paulistas, uma mineira e uma pernambucana como “prendas”, tive o cuidado de trazer Paixão Côrtes para interpretar o papel-título Zacaria e os pioneiros chuleadores Henrique César e Wilson Cavalheiro para interpretarem os dois peleadores. A estréia, super aplaudida, sacudiu o Theatro São Pedro à noite de 6 de abril de 1956.
Daí partimos para uma longa temporada (recorde de 68 espetáculos de permanência em cartaz) percorrendo todas as cidades do interior a que chegavam os trilhos da Viação Férrea. Impedido de se afastar de Porto Alegre, Paixão foi substituído pelo ator Glênio Perez, que colheu fartos aplausos principalmente na região da Campanha, onde o público se identificava lindo com os costumes e o linguajar em cena. Apenas as danças tradicionalistas apresentavam um quê de novidade, mas, quanto ao mais, a platéia parecia se irmanar aos atores para viver cenas que lhe eram tão familiares.
Na cidade de São Gabriel, aliás, ocorreu algo inesperado. Quando Cesário e Gateado puxaram das adagas e iniciaram a peleia, eis que um velho se levantou da platéia, afobado, e correu para a porta de saída. Nosso secretário Madruga Duarte, sempre eficiente, ainda conseguiu alcançá- lo, perguntando o que estava acontecendo e no que poderia ajudá-lo.
– Daqui a pouco vem a Polícia e não quero servir de testemunha mais uma vez!
* Luiz Carlos Barbosa Lessa é jornalista, historiador, folclorista e escritor.