Um belo dia o porteiro do seu edifício resolve fazer uso do três-oitão para invadir uma reunião do condomínio, destituir o síndico e declarar-se a autoridade suprema no prédio. Determina, a partir de então, o que pode e o que não pode ser dito nos corredores, o que o fanzine do Zezinho deve ou não publicar, e ordena que alguns moradores mudem para outro bairro, sob protestos do seu vizinho de porta, o qual, estranhamente, você nunca mais vai ver. Há boatos de que os descontentes são torturados na garagem durante a noite, mas você não chega a dar atenção, admirado que está com a beleza do saguão reformado e das novas luzinhas de Natal.
Passam os anos e os boatos já se tornam burburinhos, um corpo é encontrado no fosso do elevador, e o Porteiro-Supremo, desgastado também pelos rombos nos balancetes do condomínio, decide devolver a administração para os moradores de forma lenta, gradual e segura. Ou seja, usando uns anos mais para acalmar os ânimos e assegurar-se de que nada seja investigado, de que ele não seja responsabilizado por coisa nenhuma e receba de volta com louvores o seu emprego de porteiro. O que passou, passou, não se fala mais nisso.
Pois bem, em linhas gerais e sem gracejos, foi isso o que aconteceu no Brasil durante os anos de ditadura e de transição para a vida democrática. Uma transição vista por muitos como positiva, sem traumas, como aponta o síndico de plantão FHC. Como se o trauma já não estivesse, antes de mais nada, na brutal ruptura construída por um golpe militar e seus atos institucionais. Como se fosse possível elaborar uma normalidade absolvendo e conservando no serviço público os quadros militares, policiais e civis responsáveis por aquela usurpação do poder. Como se o silêncio imposto, marca do período, pudesse ser curado por mais silêncio, no desconhecimento eternizado de páginas cruciais da nossa história.
Nesse agosto do cachorro falando sério louco (que o meu pastor Luther confirma, lá do pátio), a anistia política brasileira completa vinte anos. Afrontando a reivindicação dos CBAs, OAB, CNBB, da imprensa e da parte desperta do povo brasileiro, o projeto aprovado em 1979 serviu para acobertar protagonistas do terrorismo de Estado, suas ações, seus mandantes. O resultado prático viu-se há pouco, quando por detalhe um ex-torturador não foi presenteado com o singelo cargo de Diretor da Polícia Federal. Vê-se, também, diariamente, nos métodos e na formação ética das polícias brasileiras, nos massacres de presos e de menores de rua, na arrogância absolutista dos que deram suporte político à ditadura e permanecem no poder.
Falou-se muito, na época, e ainda se fala, em revanchismo por parte dos diretamente envolvidos na guerrilha e seus familiares. Não me tomem por i n o c e n t e . Perdi um irmão, Luiz Eurico, morto aos vinte e quatro anos com um revólver em cada mão, ciente do que estava fazendo e do fim que poderia ter. Vindita? Claro, se topasse de frente com quem o matou, de preferência tendo uma metralhadora em cada mão, assumiria as conseqüências com prazer e com coragem, coisa que sempre faltou à ditadura, mais afeita à ocultação de corpos e à forja de laudos cadavéricos.
Mas não há o porquê de se tratar como vingança pessoal uma questão que é de todos. Estabelecer – ou não – essa relação entre as polícias e a política do presente e do passado é tarefa da sociedade brasileira. Tão mansa e festiva, ela às vezes age como um morador ainda encantado com as luzinhas de Natal, cumprimentando o porteiro na entrada e na saída, como vai, ora vejam, o senhor está estuprando a faxineira, que interessante, lembro que aconteceu o mesmo anos atrás com uma moça do terceiro andar, mas não vamos falar do passado, não é, passe bem, se precisar de alguma coisa é só chamar. E a senhora também, viu?
*Nei Lisboa é cantor e compositor