Colonialismo moral
Quando o general Lanusse, depois de um porre, resolveu tomar também as Ilhas Malvinas, não havia dúvida sobre quem eram os vilões da história. Foi outra desgraça causada à Argentina pelos seus generais de opereta. Felizmente a última, já que o vexame nas Malvinas ajudou a derrubar o regime militar. Mas você podia lamentar os generais e nem por isso torcer pela Inglaterra, aquela outra megalomania farsesca, disposta a ir à guerra para defender o último farelo do seu império. E as suas reservas de petróleo, claro. Depois se soube que a ação dos ingleses nas ilhas incluiu atrocidades e que o cruzador argentino Belgrano foi posto a pique mais como um ato de intimidação do que por necessidade militar, enquanto os tablóides de Londres celebravam a grande vitória sobre os selvagens argies. Além de defender os restos de um feio passado colonialista sem remorso, os ingleses aproveitaram para dar outra lição numa raça primitiva, como nos seus bons tempos. Calhordice por calhordice, dava empate, a não ser que você achasse a aventura argentina pior do que a recaída inglesa, ou vice-versa.
No caso da detenção do Pinochet na Inglaterra enquanto decidem se ele vai ser julgado na Espanha por crimes que cometeu no Chile, você não precisa abandonar a festa pela perspectiva de que justiça, afinal, será feita aos torturadores e desaparecidos, ou defender o Pinochet, para concordar que há uma analogia possível. Também estão dando uma lição aos primitivos. Pinochet será julgado na Espanha, se for, porque não foi julgado no Chile, porque no exótico Terceiro Mundo as coisas não acontecem como deviam. Quer dizer, não acontecem como na metrópole. Para diminuir um pouco esse aspecto de colonialismo moral bem que o tal juiz espanhol poderia pedir a prisão de algum cúmplice metropolitano do carrasco. O Kissinger, por exemplo. Prendam o Kissinger. Foi responsável por muito do que aconteceu no Chile, e mesmo que não fosse é um dos grandes patifes do século. Culpas é que não lhe faltam – e ele vai seguidamente à Europa. Peguem o Kissinger!
Reflexões
Ainda deve estar na National Gallery de Londres uma exposição organizada por Jonathan Miller chamada Reflexions, um estudo sobre o uso de espelhos e reflexos na arte. Um livro com texto de Miller acompanha a exposição, e nele, como não podia deixar de ser, o autor dedica algumas páginas à fascinante pintura cheia de truques de Velasques, Las Meninas. No quadro, Velasques está pintando um quadro, espiando de trás de uma tela. O que está pintando não fica claro, depende da interpretação. Em primeiro plano está a Infanta paparicada por empregadas, e estas seriam as “meninas” sendo retratadas. Mas Velasques está atrás delas, olhando por cima de suas cabeças, na nossa direção. Num espelho, na parede de trás, aparece vagamente um casal que pode ser Felipe IV e a mulher, de frente para a cena. O casal está na nossa posição, na frente do quadro. Se a cena fosse real, seríamos nós refletidos naquele espelho. Assim, Velasques estaria fazendo um retrato de Felipe IV e sua mulher e a infanta e seu séquito teriam apenas interrompido a sessão. O maior mistério de Las Meninas, segundo Miller é: se esta interpretação é correta, por que não existe uma caçada mundial a um retrato de Felipe IV e a mulher feito por Velasques, e de cuja existência não se tem notícia? Las Meninas também é uma reflexão sobre a relação da arte com o poder. Como o quadro é pintado do ponto de vista do casal que estava posando, Velasques se pintou não como ele se veria num espelho mas como seus patronos o viam. O pintor obsequioso se coloca em seu lugar. É um intruso na intimidade do palácio, só existe e prospera por uma deferência do rei. Mas pitando-se do ponto de vista do rei, Velasques pinta o próprio rosto como o rei o vê, mas pinta o rei refletido no espelho, portanto o rei pelo inverso, portanto o rei errado. Velasques se coloca como rei verdadeiro, pelo menos daquele momento de criação, com domínio absoluto sobre a imagem e a posteridade do poder, e que artista ou crítico quer outra coisa?