A chefe da fiscalização da Delegacia Regional do Trabalho no Rio Grande do Sul, a advogada Helena Beatriz Maidana de Andrade, que atua no setor há 22 anos, admite que está assustada com a crescente perda de direitos sociais no mundo do trabalho.
Há 22 anos atuando na fiscalização da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) do Rio Grande do Sul e há dois como chefe de fiscalização, Helena Beatriz Maidana de Andrade, já viu de tudo o que se pode imaginar sobre desrespeito às leis e a quem ganha a vida com o seu trabalho. Situações como trabalho infantil, escravo e, o que mais a está preocupando no momento: a “flexibilização” dos direitos trabalhistas, que pode resultar na volta à escravidão. Ela conta que levantamento solicitado pelo Ministério do Trabalho sobre o trabalho infantil no Estado revelou um diagnóstico que ela considera horrível e surpreendente, confirmando pesquisa do IBGE que apontou no território gaúcho um dos mais altos índices brasileiros de trabalho infantil ilegal.
Extra Classe – Como começou o trabalho da DRT contra a exploração infantil?
Helena de Andrade – Nós recebemos uma solicitação do Ministério do Trabalho, Secretaria de Fiscalização, para fazermos um diagnóstico sobre o trabalho infantil e adolescente no Rio Grande do Sul. A partir daí, saímos a campo. No início, foi um diagnóstico muito rápido, porque o governo necessitava apresentá-lo no exterior. Cada estado fez um levantamento. Aqui, começamos com um grupo de fiscais que acabou formando a Comissão de Combate ao Trabalho Infantil, composta de médicos, engenheiros… Começamos a verificar onde estavam inseridas as crianças.
EC – Qual foi o quadro?
HA – Horrível, porque não imaginávamos que tivesse muita criança e adolescente trabalhando aqui no Estado. E nós constatamos, também por uma pesquisa do IBGE, que tínhamos um dos maiores índices do Brasil. Porque nós temos uma cultura de trabalho na agricultura. Pela descendência germânica e italiana, há uma cultura de, desde cedo, a criança acompanhar os pais nas lides do campo. Então, nosso tipo de trabalho é diferente do resto do Brasil. A criança acompanha o pai e a mãe, muitas vezes tem que sair da escola, mas é bem alimentada, com raras exceções, tem um bom café da manhã. Muitas vezes, desempenha atividades que trazem prejuízos, como manejo de animais, limpeza de pocilgas, carregamento de madeiras e lenhas. É o problema do peso.
EC – Pela legislação é proibido o trabalho infantil?
HA – Pela legislação, criança não pode trabalhar antes dos 14 anos. Ela tem de estudar, se desenvolver física e psicologicamente. Agora, o adolescente pode trabalhar, até porque meninos e meninas ajudam a compor a renda familiar. Atuamos onde não há possibilidade de trabalhar.
EC – Como exercer essa fiscalização?
HA – Nós temos feito essa fiscalização por indicação e denúncia de conselhos tutelares, sindicatos e entidades ligadas à criança e ao adolescente. Verificamos onde havia essas denúncias e fomos a campo. Conseguimos detectar focos no Estado. Por exemplo: Ametista do Sul, um dos lugares onde encontramos cerca de 300 menores trabalhando nas minas de extração.
EC – Esse é um trabalho totalmente insalubre?
HA – Horrível. Fomos lá também porque nas minas se usam explosivos. E geralmente esses explosivos são detonados por eletricidade. Temos seis crianças que faleceram num período de dois anos. Meninos de 14, 15 anos. Fora os acidentes, quando perdem um pedaço do braço ou da mão, decepam um pé porque trabalham com britadeira e uma série de materiais considerados perigosos. E tem a poeira, no interior da mina. Os pulmões acabam comprometidos. Não tem volta. Conseguimos, com um trabalho articulado com a Procuradoria do Trabalho, e o promotor público de Ametista do Sul, e Ministério do Trabalho, fazer uma reunião com a comunidade e o prefeito. Obtivemos a retirada desses menores. Aconteceu um problema social sério, porque eles não tinham onde trabalhar. Mas os pais deles receberam equipamento de segurança e está sendo providenciada uma escola de aprendizagem para os meninos. Também conseguimos fazer um trabalho de esclarecimento junto a muitas escolas proibindo o trabalho insalubre e que envolvam crianças. Até porque, é preciso salientar, esses meninos tiram o trabalho dos pais. Eles ficam desempregados e os meninos fazem o trabalho por muito menos.
EC – Além do trabalho infantil, com que outras denúncias vocês trabalham?
HA – Em relação ao trabalho escravo, eventualmente encontramos isso nos cortes de mato. Resume-se ao seguinte: são famílias de fora do Estado, ou mesmo do Estado, mas de outra região, que são colocadas em alguns alojamentos – se é que dá para chamar assim – que trocam seu trabalho pela alimentação. Quando fazem as contas para ver quanto vão receber, não tem nada e, muitas vezes, estão devendo. Estão escravos, não podem ir embora porque estão devendo para o “gato”, que é o feitor, o intermediário desses cortes de mato. Isso acontece em Palmares das Missões, Tavares, onde se comprovou denúncias de famílias nessa situação.
EC – Como é feito o trabalho para resolver essa situação?
HA – Atuamos em conjunto com a Polícia Federal, com os promotores públicos. Proibimos aquele tipo de trabalho, autuamos a empresa e os promotores entram com a ação criminal contra esses exploradores. Conseguimos encerrar o assunto, mas volta e meia ele retorna.
EC – A senhora considera adequado o número de fiscais de sua equipe?
HA – Hoje estamos defasados. Mas temos cerca de 20 fiscais que se deslocam mensalmente para todas as regiões. Onde há empregado, onde há registro, salário, 13?, férias, fundo de garantia, o vínculo de emprego que vá permitir que a pessoa se aposente e tenha uma renda, estamos trabalhando. Há também a área de segurança e medicina do trabalho, que nos dá muito o que fazer, porque o Brasil ostenta o título de campeão em acidentes do trabalho. No Estado, pela Rais de 97, temos 206.275 empresas. Isso deveria ser fiscalizado, mas não temos perna para tudo isso. São 150 fiscais para tudo. Precisaria abrir concurso público, pois necessitamos, no mínimo, de 500 fiscais. Os sindicatos atuantes é que entram com as denúncias. É um trabalho de 24 horas. Há denúncias de trabalho à noite, de madrugada. Damos muitas incertas para verificar se não há reincidência.
“Infelizmente, hoje o que a gente tem visto é que o empregado não tem nenhum poder de negociação, porque ele se limita a garantir o seu emprego. Se não há sindicatos fortes, o empregado individualmente fica fragilizado.”
EC – No mundo do trabalho, atualmente, o que tem dado mais dor-de-cabeça para a DRT?
HA – Atualmente, o que tem acontecido são rescisões de contratos não pagas. As empresas estão desaparecendo; quando fecham, não têm condições de recolher o fundo de garantia, de pagar verbas rescisórias. Temos recebido essas denúncias e chamado as empresas. A maioria delas prefere não sujar o nome. A empresa acerta na nossa frente, parcela. Isso porque a conjuntura está muito difícil. Além disso, também há denúncia de atraso de salários.
EC – Qual a linha adotada?
HA – A da negociação. Procuramos não autuar a empresa, porque isso não resulta em benefício para ninguém. Temos conseguido, em média, 70% de acerto entre patrão e empregado. Se vai para a justiça do trabalho, demora muito, empregado e empregador têm de pagar advogado. Realmente aqui, as mazelas são grandes, como falta de baixa na carteira, porque a empresa desaparece e o empregado não tem como se aposentar. Nós providenciamos isso aqui também. Temos hoje um sistema de informática que permite localizar as empresas desde o final da década de 80. Antes disso, se o empregado traz indícios, tem como dar baixa na carteira. Temos conseguido aposentar várias pessoas.
EC – A senhora falou em carteira de trabalho. Mas hoje existem muitos trabalhadores que nem têm esse instrumento. Isso dá muito trabalho para a DRT?
HA – Sim. Quando nós chegamos em uma empresa, a primeira coisa que fazemos é pedir um levantamento de todos os empregados. E pedimos que nos apresente um registro, porque ali começa a contar a vida do empregado. Se não, ele não existe. É o histórico dele. É primordial o registro. Se não tem, damos um prazo para a empresa fazer. Se não faz, temos de autuar.
EC – A que tipos de multas as empresas ficam sujeitas?
HA – Temos várias multas. A não apresentação de documentos, artigo 630 de CLT, parágrafos 3? e 4?, enseja uma multa de 1.300 e poucas Ufir (quase R$ 1.300 reais). A falta de registro tem outra multa. São centenas de multas para cada artigo da CLT. Porque senão, seria impossível trabalhar. As denúncias aqui são as mais variadas.
EC – Hoje em dia, uma das palavras mais usadas é a flexibilização do trabalho, onde as empresas, cada vez mais, fazem o que bem entendem. Como ficam os empregados? Eles têm de se submeter?
HA – Infelizmente, hoje o que a gente tem visto é que o empregado não tem nenhum poder de negociação, porque ele se limita a garantir o seu emprego. Se não há sindicatos fortes, o empregado individualmente fica fragilizado.
“Mas a tendência que se sente no Ministério do Trabalho é que a fiscalização deve se adequar a essa flexibilização, dando mais prazos para as empresas recolherem quantias não pagas, para que não sejam penalizadas de pronto…”
EC – Mas os sindicatos também estão fragilizados.
HA – É. Porque hoje, numa pauta, eles têm de garantir o emprego de seus associados.
EC – O desemprego força a perda de alguns benefícios?
HA – Sim. Eu lembro ter mediado muitas greves aqui, onde as pautas eram enormes, na época da inflação. Hoje não, as empresas estão tirando muitas das cláusulas sociais, onde a manutenção do emprego e a hora extra, muitas vezes, é o que é importante.
EC – Atualmente, até a hora extra está em discussão, através do banco de horas.
HA – Aqui no Estado, temos quatro empresas que aderiram ao banco de horas. Trabalhadores e sindicatos não vêem isso com bons olhos.
EC – Está em curso uma grande mudança nas conquistas trabalhistas com alterações na CLT e na Constituição?
HA – Exatamente. Mas isso é a precarização do trabalho. O trabalhador não vai ter muita escolha. Ou aceita essas modificações ou vai ficar sem emprego. E acho que há um incentivo muito grande para que o trabalho informal seja desenvolvido na prestação de serviços, através do estímulo para que o empregado abra seu negócio com o fundo de garantia, invista em cachorro quente, essas coisas.
EC – Essas modificações já estão acontecendo?
HA – Sim. É o caso do banco de horas, contrato por prazo determinado…
EC – Então, essa conjuntura de falta de emprego, sindicatos fragilizados, pode piorar a situação do trabalhador?
HA – Hoje se vê isso com preocupação. A situação é mundial. Há uma economia que dirige todo o mundo. É a tal da globalização, que se reflete aqui.
EC – A DRT já recebeu alguma orientação em relação a isso?
HA – Temos um seminário no início de setembro sobre as novas fiscalizações no mundo do trabalho frente as modificações da legislação. Enquanto isso, fazemos o mesmo tipo de trabalho de sempre, mantendo a CLT e demais diplomas legais. Mas a tendência que se sente no Ministério do Trabalho é que a fiscalização deve se adequar a essa flexibilização, dando mais prazos para as empresas recolherem quantias não pagas, para que não sejam penalizadas de pronto… Mas acho que o mínimo de garantias têm de ficar, como o salário mínimo, jornada de trabalho, direito a férias, 13º. São prerrogativas que não podem ser retiradas em nome da flexibilização. Seria voltar ao trabalho escravo. Se não vai ter mais pagamento de hora extra, sem jornada, sem garantias, é a precarização do trabalho. Estou com muito medo dessa situação toda.