Essa história de que o exercício de certas profissões pressupõe algumas tarefas e procedimentos inerentes, acima e além de remuneração é antiga. Acontece com várias categorias, as quais se convencionou chamar de intelectual. Quer dizer, é como se aqueles que pensam, elaboram e problematizam questões estéticas, filosóficas, científicas vivessem num universo etéreo, feito exclusivamente de idéias. É como se eles mesmos fossem idéias, prescindissem dessas funções orgânicas que fazem os operários suarem durante o dia e dormirem um sono profundo à noite.
Parece natural que cientistas, filósofos e estetas aprendam várias línguas, leiam muitos livros e periódicos especializados, pesquisem, organizem informações por sua própria conta e risco. A divisão social do trabalho nos quadros da sociedade capitalista produziu determinadas concepções que são subssumidas de forma alienada, por conta do processo ideológico. Nesta perspectiva está a separação entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. O primeiro, desprestigiado socialmente, é medido e remunerado de forma objetiva. O segundo, que ocupa o topo da pirâmide na escala do status quo, merece todos os elogios e reverências, mas quando chega na hora de acertar as contas, a conversa cai na mais hermética abstração.
O Positivismo e suas categorias sociológicas se encarregou de fornecer as estreitas linhas de raciocínio que fazem disso um mito no âmbito do senso comum. Imagine, o trabalho intelectual é impagável, onde já se viu tanta vulgaridade com matéria tão sensível! Nem mesmo as mudanças concretas de concepções e práticas alavancadas pela revolução tecnológica da qual somos contemporâneos têm conseguido superar essas bobagens.
Cientistas, jornalistas, professores, filósofos, advogados, sociólogos, psicólogos também suam no colarinho da camisa como o metalúrgico na gola do macacão. E convenhamos, todos ganham muito mal no país da estabilidade monetária. Ao contrário do metalúrgico, os outros trabalham em casa, à noite, no final de semana, nas férias. Entre todos, considerando as necessidades imediatas de planejamento e prazos rígidos, o professor é o que mais trabalha fora do período regulamentar. Tanto é verdade que na rede pública de ensino há muito está consagrada a remuneração da hora-atividade. Apesar disso, embora haja o reconhecimento das horas consumidas na preparação de aulas e correção de provas, na esfera da educação particular, as instituições resistem em pagar o magistério pelas atividades extraclasse. É disso que a reportagem de Extra Classe desta edição trata, revelando um flagrante no cotidiano do professor e suas múltiplas tarefas para garantir o desempenho dos estudantes. Talvez os patrões imaginem que para o professor basta a reverência positivista. Engano, há muito esta categoria se reconhece como trabalhador. E mais do que isso, trabalhador e cidadão.
O caso dos professores faz pensar nas contradições que encerram, digamos assim, a cultura contemporânea do trabalho. Na verdade, essas contradições não são contraditórias com um modelo de sociedade que pode e tende a reduzir qualquer valor humano à mercadoria numa dimensão jamais imaginada.
Nunca se falou tanto no valor do conhecimento e nunca se pagou tão mal por ele. Talvez porque a retórica neoliberal não tenha avisado que na catilinária da qualificação profissional e da qualidade total não cabem todos, simplesmente porque o mercado exclui a maioria. Ou, dito de maneira diferente, o conhecimento só é remunerado sem mesquinharia quando pode ser mais facilmente instrumentalizado para o lucro essencialmente privado. Se você tem alguma dúvida, pergunte a um publicitário quanto custa uma boa idéia para vender no varejo.