Ele trocou o horizonte aberto do pampa e fez do casarão da praça da matriz uma sentinela, da qual tem o privilégio de assistir à representação do drama e da comédia humanas, que fazem da vida de um ex-carpinteiro um território de poucas fronteiras. Oscar Siqueira cuida do São Pedro com intimidade e carinho, sabendo-se responsável por uma parcela do prestígio que este espaço público exemplar merece da comunidade.
Os tipos que chegam da região da campanha costumam se ufanar de uma paisagem aberta, sinônimo de liberdade e transcendência. Oscar Siqueira, aos 71 anos, já não consagra este atavismo. Ou melhor, entregou-se com paixão à lide de zelar por uma casa que limita seu horizonte apenas pela imensa geografia da alma humana. Carpinteiro de profissão, ele deixou Quaraí – na fronteira com o Uruguai, como faz questão de ressaltar – no início dos anos 70 para trabalhar na CRT, em Porto Alegre. A nova ocupação não durou muito tempo, logo seria convidado a integrar a equipe que, contrariando a impressão geral, reconstruiu o Theatro São Pedro. “Cheguei aqui no dia 11 de novembro de 1975”, relembra ele, com a precisão de quem se refere a um marco na história pessoal. “Fui convidado a trabalhar por dois anos, ajudar a desmanchar e depois construir”, relata agora o “Seu Oscar”, como é chamado carinhosamente o zelador do São Pedro, que cuida do teatro com carinho e intimidade há 23 anos.
“O tempo foi passando e eu fui ficando”, pronuncia pensativo, confessando uma sensação de bem-estar em viver 24 horas por dia dedicado a uma casa que, afinal, é dele, dos artistas, da platéia. “Ele é o primeiro a abrir as portas e o último a apagar as luzes”, depõe a diretora da Fundação Teatro São Pedro, Eva Sopher. Para ela, é isso que explica o prestígio do São Pedro: “a dedicação integral e carinhosa de uma equipe unida e permanente. As pessoas vestem a camiseta e o Seu Oscar é um exemplo desta fidelidade”, acrescenta Eva Sopher. “Trabalhar com ela é muito bom, nunca deixa nada confuso”, retribui Seu Oscar.
“Ele é uma pessoa de absoluta confiança, cuidadosa e que tem uma intimidade impressionante com cada lugar, cada detalhe do teatro”, assinala Ismael Solé, um dos engenheiros que reergueu o São Pedro. Ele nunca deixa ninguém na mão e controla o patrimônio do teatro com rigor”, completa Solé, explicando que Seu Oscar tem todas as chaves, inclusive a da gabine em que está o equipamento mais sofisticado da casa, o complexo eletrônico que opera o palco, o sistema de luz e som.
O dia-a-dia de um teatro é um entra e sai de artistas, músicos, grupos de teatro que, eventualmente, trazem seus próprios equipamentos de luz e som, além de cenários e guarda-roupa. “Ele faz a triagem da entrada e da saída, sabe exatamente o que é e o que não é do teatro”, salienta Rogério Priori, professor de culinária e ecônomo do Café do São Pedro há quatro anos. Meticuloso, Seu Oscar sabe que cuida de um lugar público exemplar, com a consciência de que a cada momento a casa e as expectativas em torno dela se renovam. “O espetáculo termina e começa de novo”, define Priori. “Eu sempre reviso tudo, quando alguma coisa estraga eu fico chateado e chamo logo a manutenção”, confirma Oscar.
Viúvo, pai de oito filhos e com 13 netos, Oscar Siqueira recorda com emoção a noite fria do inverno de 1984 quando a casa foi reinaugurada com Bibi Ferreira cantando Piaf. “Aquilo foi muito bonito… e tinha gente que dizia que a obra nunca ia terminar”, conta ele, que assiste a quase todos os espetáculos. “Quando dá, os que gosto mais, assisto mais de uma vez. Minha vida é praticamente aqui dentro”, descreve, reiterando a observação de Priori sobre o apreço do Seu Oscar pelo teatro, casa e espetáculo: “de vez em quando a gente vê o Seu Oscar na coxia, cuidando para que tudo dê certo e assistindo a peça”.
Oscar Siqueira tem dificuldade em eleger os espetáculos de que mais gostou. Vacila algum tempo e depois confessa, “Tangos & Tragédia”, de Hique Gomes e Nico Nicolaieviski, 12 anos em cartaz no São Pedro. “Fiquei amigo deles”, diz satisfeito, esclarecendo que, de fato, hoje tem muitos amigos artistas. “Faço o melhor que dá para fazer por eles”, acentua Oscar que, também tem a chave do Café e, vez por outra, recebe mercadorias para o também amigo Rogério Priori.
Aposentado e proprietário de uma casa em Gravataí, com jardim e pomar, entregou a residência para uma das filhas. Seu Oscar nem pensa em trocar o teatro por outro lugar. “É bom viver aqui, trabalhar aqui, considero uma tranqüilidade morar num palácio no centro da cidade”, brinca, referindo-se à Praça da Matriz, onde está vizinho do Judiciário, do Legislativo e do Executivo. Por conta disso, tornou-se amigo dos brigadianos que fazem o policiamento da área. “Aqui é muito seguro”, diz ele, que vive num pequeno apartamento dentro do teatro e tem como companhia uma cachorrinha – “que ajuda a cuidar do teatro” – e o rádio sempre ligado na Guaíba. “Ouço a Guaíba, principalmente os noticiários e o esporte, há uns 30 anos. Não gosto muito de TV”. Do pampa, guarda o gosto pelo churrasco e “a comida da roça”, e a lembrança de um horizonte grande, mas muito menor do que os dramas humanos que, de forma muito especial, tem compartilhado com Paulo Autran, Irene Ravache, Marília Pera, Antônio Fagundes, Fernanda Montenegro, Tônia Carrero e tantos outros nomes do teatro brasileiro.