Há 30 anos, na França, A sociedade do espetáculo inspirou a ala mais radical das barricadas de Maio de 68. Esse livro de Guy Debord foi lançado no mesmo ano em que Che Guevara era assassinado. Hoje, tal coincidência nos convida para uma reflexão sobre o “espetáculo” e a “política”, pois, sob o argumento da democracia, a sociedade está sendo remodelada sem o contraponto de alternativas. Uma espécie de pensamento único está forjando um consenso muito bem articulado que, consegue, inclusive, ser mais eficaz do que os regimes autoritários. Através de uma seleção de imagens se procura redefinir a história e os seus significados.
Em seu livro, Guy Debord mostra, já em 1967, que a vida real é pobre e fragmentada. Os indivíduos contemplam e consomem passivamente imagens de tudo o que lhes falta em sua existência real. Assim, a realidade torna-se uma imagem, e as imagens tornam-se realidade.
É o típico reinado do parecer onde a feitiçaria da mercadoria faz o espetáculo. Debord está de acordo com Marx ao definir o capital enquanto relação social. Ele vai, até mesmo, além de Marx quando mostra que tais relações não são mediadas apenas pelo valor das coisas, como no fetichismo da mercadoria, mas diretamente pelas imagens das mercadorias. Nesse caso, o espetáculo é uma verdadeira religião terrena e material, em que o homem se crê governado por algo que, na realidade, ele próprio criou. Debord, estilista de uma vida autêntica, se opõe aos simulacros, peculiares do desenvolvimento capitalista, a partir da ênfase que reserva ao espaço público. Ele defende os sovietes como um meio de livrar o homem da sua condição de mercadoria e, ao analisar os episódios de Maio de 68, reconhece que a política está presente não apenas nos espaços institucionais.
Guevara é mais conhecido pela sua ação prática, como militante, e menos pela sua atuação como pensador. Guevara soube ver na Revo-lução Cubana as particularidades que a construção do socialismo assume num país não desenvolvido. Acentuou um marxismo antidogmático e mostrou que a dura realidade chamava os revolucionários a serem criativos na crítica ao capitalismo e, também, aos erros praticados em Cuba e na URSS.
Guevara interpreta Marx enfatizando que o socialismo não pode ser considerado somente como o resultado de contradição de classe de uma sociedade altamente desenvolvida, as quais seriam resolvidas por meio de uma revolução; o homem e, antes, o portador consciente de ação da história. Sem “esta consciência, que inclui o saber de seu próprio ser social, não pode haver comunismo”. Che foi influenciado pela vertente de pensamento marxista que se desenvolveu na Argentina e que concebe o socialismo como resultado de um processo contínuo de cooperação entre ética e ciência. Guevara está em concordância com Guy Debord à medida que concebe o espaço público como cenário principal de discussão dos problemas do partido e do Estado. Ambos procuram valorizar a política enquanto busca coletiva de alternativas, que diminuam, em certo sentido, a distância entre o “palco e a platéia”.
Além disso, tanto Che como Debord, possuem a fina sintonia de procurarem a autenticidade da vida naquilo que não está pronto. Para eles, essa vida autêntica não é um dado da natureza, nem algo que se perdeu. É alguma coisa que precisa ser buscada no caminho da fraternidade, da liberdade e da igualdade.
* Mauro Gaglietti é professor no Departamento de Sociologia e Política da Universidade Federal de Santa Maria.