GERAL

Que polícia é essa?

Cessada a turbulência provocada pelas greves nas polícias civil e militar, em junho e julho, governo, sindicalistas e policiais ainda tentam entender o que aconteceu
Por Renato Hoffman / Publicado em 8 de agosto de 1997

À primeira vista, as paralisações apoiadas pelo movimento sindical em todo o país pareciam ter selado uma aliança entre os trabalhadores comuns e aqueles autorizados a portar armas na cintura.

Os responsáveis pela Segurança Pública temiam que o protesto fosse controlado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) ou pelo Movimento dos Sem-Terra (MST).

Tropas do Exército foram convocadas e ficaram em prontidão. Fernando Henrique e os governadores vararam madrugadas discutindo medidas capazes de pôr fim à crise. Mas, dois meses após estourar a primeira rebelião, na Polícia Militar de Minas Gerais, a sensação é de que tudo voltou ao normal.

Resolvida a questão salarial – o principal motivo daquilo que alguns setores enxergavam como “insurreição” – os praças retornaram ao patrulhamento das ruas e os investigadores retomaram as diligências.

NESTA REPORTAGEM
No dia seguinte ao acordo fechado com o governo gaúcho, por exemplo, os soldados da Brigada Militar recorreram à violência habitual para reprimir uma manifestação de professores estaduais, colonos, estudantes e servidores, em frente da Assembleia Legislativa.

A sem-terra Ivonete Tonin, da coordenação regional do MST, e mais três manifestantes ficaram feridos e foram atendidos no Hospital de Pronto Socorro (HPS). O sonho de união das categorias que sempre estiveram em lados opostos recebia um golpe de misericórdia.

Reestruturação da Segurança Pública

No auge da crise, em âmbito nacional, o ministro-chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso, acusou os comandantes das Polícias Militares de terem permitido a radicalização do movimento, “por omissão, fraqueza ou concordância”.

Mais tranquilo, no início de agosto, o responsável pelo serviço de inteligência da Presidência jogou um balde de água fria no pacote de reestruturação da Segurança Pública, que emergiu à agenda do presidente durante o momento mais grave da crise.

Disse que o governo ainda está analisando as propostas de emenda constitucional a serem encaminhadas ao Congresso.

“A pressa não pode atropelar a seriedade desses estudos”, justificou.

Os governadores e seus secretários não se entusiasmam com as propostas apresentadas pelo presidente.

A primeira delas sugere a mudança, ou a supressão do artigo 144 da Constituição, que define cada uma das polícias (federal, civil e militar).

A segunda, extingue a Justiça Militar, formada de tribunais especiais que julgam crimes cometidos por militares e muitas vezes servem de abrigo aos criminosos de farda.

Por último, seria criado um órgão nacional de coordenação das ações de todas as polícias.

Na prática, os projetos só causariam efeito a longo prazo. Como dependem de emendas constitucionais, ninguém acredita que sejam votados antes das eleições do ano que vem. Além disso, não há consenso sobre as propostas.

O secretário do Rio de Janeiro, general Nilton Cerqueira, é contra a mudança no artigo 144.

Seu colega gaúcho, José Fernando Eichemberg, diz que a desconstitucionalização abre caminho para o estado reformar a estrutura da Brigada Militar.

O governador mineiro, Eduardo Azeredo, acha que a extinção dos Tribunais Militares é um assunto que merece mais tempo para reflexão.

A criação de uma Secretaria Nacional de Segurança Pública é vista com simpatia. Na verdade, ela até já existe e tem um nome pomposo: Secretaria de Planejamento de Ações de Segurança Pública. O secretário é o general Gilberto Serra.

Interrogado por telefone sobre as atividades de sua pasta, ele recomendou que a pergunta fosse feita ao ministro da Justiça, Iris Resende.

“O governo está perdendo uma grande oportunidade de criar um novo modelo para as polícias”, critica o deputado federal Hélio Bicudo (PT/ SP).

“Toda essa conversa não serve para nada, porque não toca no fulcro da questão, que é a submissão das Polícias Militares ao Exército.”

A mobilização das polícias

Segurança Pública foi um dos cinco pontos de destaque na campanha de Fernando Henrique Cardoso. Em quase três anos de governo, pouca coisa mudou.

A maioria dos policiais continua sendo mal paga e mal preparada para a função. Denúncias de corrupção e violência são comuns.

“O problema da Polícia não é a greve, que acontece ocasionalmente, mas o seu modelo, que precisa ser discutido”, adverte o parlamentar petista.

No início de julho, 16 praças desafiaram o rígido regulamento da Brigada Militar, a polícia fardada do Rio Grande do Sul, e convocaram a imprensa para uma entrevista coletiva.

Vestindo capuzes pretos para evitar a identificação, revelaram a situação de miséria da categoria. Anunciaram a disposição de lutar por um reajuste, nem que para isso tivessem que promover a primeira greve em 160 anos de história da corporação.

Naquele momento, policiais civis e militares de vários outros estados da federação estavam paralisados.

Algumas manifestações haviam terminado em pancadaria, e provocaram pelo menos duas mortes.

Os quartéis passaram a viver dias agitados, com assembleias, passeatas e novas entrevistas.

A atitude do comando da Brigada Militar foi, primeiro, de minimizar o episódio; depois, de advertir a tropa para as consequências da quebra da hierarquia. Em bom português: Quem fizesse greve seria punido.

Os praças cobravam do governo o pagamento de 222% de adicional de risco de vida (Lei 10395/95).

A insatisfação foi crescendo até a assembleia geral do dia 17. A sede da Associação Beneficente Antonio Mendes Filho (Abamf), no bairro Partenon, foi pequena para acomodar os mais de 5 mil soldados, cabos, sargentos, tenentes e subtenentes que compareceram.

No Palácio da Polícia, os policiais civis também estavam reunidos. A cidade viveu um dia de expectativa. No calor dos pronunciamentos, duas posições se destacavam.

Uma, defendia a intensificação do movimento. Outra, a decretação imediata da greve. Não faltaram apelos para que a ordem fosse mantida e se evitassem conflitos como o que vitimou um tenente em Minas Gerais.

Os temores se justificavam, até porque se tratava de categorias sem experiência neste tipo de movimento. Além disso, nenhum outro segmento profissional vai para os piquetes armado.

Depois da assembleia, os brigadianos saíram em passeata até o Palácio Piratini. No caminho, ouviram aplausos de motoristas e pedestres.

O apoio de outras categorias

A caminhada foi engrossada por militantes de outras categorias. Um quadro impensável feito de ironia: um carro de som cedido pela CUT ajudava animar o cortejo, entoando canções de protesto.

Entre elas, Pra não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré, hino da esquerda estudantil na luta contra o regime militar no anos 70, que costumava irritar os soldados convocados para dispersar passeatas.

Um cordão de isolamento, formado por soldados da tropa de choque – entre os quais algumas mulheres -, aguardava os manifestantes na Praça da Matriz.

Depois de cumprimentar os colegas, os policiais militares fizeram um ato pacífico. Mais tarde, foram recebidos por representantes do governo e deputados estaduais.

Os dirigentes da CUT tiveram de esperar do lado de fora.

À saída, os líderes comunicaram que o governo havia pedido tempo para apresentar uma proposta. Numa rápida deliberação, as categorias decidiram conceder um prazo até a meia-noite do dia 22. Caso contrário, a greve começaria no primeiro minuto do dia 23.

No domingo, 20, o chefe da Casa Civil, Mendes Ribeiro Filho, foi encarregado pelo governador Antônio Britto de anunciar a proposta: Um abono salarial.

Na madrugada do dia 23, em vez da greve, os brigadianos optaram por uma assembleia geral permanente.

A manobra visava evitar que o movimento fosse declarado ilegal. Pela manhã, as rádios noticiavam a existência de raros piquetes na entrada dos quartéis. O comandante da Brigada Militar, coronel Dilamar Vieira da Luz, garantia que a situação era normal.

Com apoio da CUT, a Acasol, a Ugeirm/Sindicato e a Abamf deram uma demonstração de força, no início da tarde.

Um arrastão com mais de 500 grevistas percorreu alguns batalhões da BM em Porto Alegre

No dia seguinte, policiais e sindicalistas estiveram lado a lado mais uma vez, na ocupação das galerias da Assembleia Legislativa. O objetivo era impedir a votação de projetos do Executivo durante a convocação extraordinária. Como a pressão não foi suficiente, cerca de 200 manifestantes decidiram ocupar o plenário do legislativo.

O brigadianos se recusaram a acompanhar os sindicalistas, deixando claro que não aceitavam agir contra a lei, e foram embora. Estavam estabelecidos os limites da parceria.

“Não podemos exigir que a população cumpra a lei se não agirmos corretamente”, justificou o presidente da Abamf, cabo Pedro Dias de Moraes. Na mesma noite, os líderes do movimento acabariam aceitando uma nova proposta do governo.

A ocupação do plenário da Assembleia derivou para um tumulto generalizado e provocou o encerramento da sessão. As manchetes dos jornais do dia 24 adjetivaram a situação como “baderna”. Os prédios públicos tiveram a segurança reforçada.

No Legislativo, soldados do 4? Regimento de Polícia Montada guarneciam a entrada. O ambiente era tenso e não demorou a descambar para a violência. Postados em territórios opostos, trabalhadores rurais e soldados se enfrentaram numa batalha sem trégua.

Pedras alvejaram os brigadianos, que retrucaram com golpes de cassetete. O confronto terminou com quatro feridos encaminhados ao Hospital de Pronto Socorro (HPS).

Os dois lados contabilizam vítimas nesta guerra conhecida.

A BM não perdoa os sem-terra pela morte do soldado Valdeci Lopes, durante um confronto em 1990. Os colonos lembram os despejos violentos nas fazendas Santa Elmira e São Juvenal.

“O MST não deve esperar retribuição dos PMs”, foi logo avisando o cabo Moraes, da Abamf. Ao contrário do que fazia supor o apoio do MST e da CUT aos policiais, a paz ainda está distante.

Controle público da segurança

• O deputado estadual José Gomes defende a desmilitarização das polícias. Ele é a favor de um organização civil, com um segmento fardado fazendo o policiamento ostensivo das ruas. Gomes propõe ainda a criação de conselhos de segurança pública eleitos pela sociedade. Acredita que se o Rio Grande do Sul já tivesse esses conselhos, casos como o do Detran, cuja terceirização é um processo eivado de suspeitas, não aconteceriam.

• O deputado federal Hélio Bicudo apoia a ideia de transferir a responsabilidade de organização das polícias para os governadores. Faz apenas uma ressalva: “Desde que não seja militar.” O parlamentar petista afirma que hierarquia e disciplina não são atributos exclusivos dos militares. “Podemos ter uma polícia civil muito bem organizada e disciplinada.”

• O secretário estadual da Justiça e Segurança, José Fernando Eichemberg, fala em tornar a Brigada Militar “menos igual” ao Exército. Mas não aceita a fusão das duas forças policiais. Para ele, a Brigada Militar precisa enxugar sua estrutura de comando, extinguindo, por exemplo, os estados-maiores (grupos de oficiais que assessoram os comandantes de cada unidade).

• O advogado Ricardo Cunha Martins, do Centro de Defesa e Assistência (CDA), concorda com a ideia da criação de conselhos da sociedade civil para controlar a segurança pública. Acrescenta que é preciso fortalecer as instâncias de correição das polícias. Salienta ainda a necessidade de investimentos na formação do policial, através de um recrutamento criterioso, de cursos mais longos e de melhor qualidade. Recomenda, por último, o pagamento de salários dignos para que a carreira policial possa atrair pessoas com mais escolaridade.

Perfil da polícia começa a mudar

“A mobilização dos praças em todo o país traz uma nova nuança ao perfil do policial militar”, não duvida o deputado estadual e ex-presidente da Acasol, José Gomes (PT). O parlamentar reconhece a falta de liderança e o caráter economicista das reivindicações.

Porém, como diz, “onde passa boi, passa boiada”, ou seja, “no futuro, esses homens vão para a rua de novo, porque o mais difícil, que era vencer o medo da repressão, já aconteceu.”

“Daqui para frente, o avanço da consciência política dessa categoria vai depender da capacidade do movimento sindical entender a ambiguidade da função desses trabalhadores”, opina o deputado petista.

O presidente estadual da CUT, Francisco Vicente, avalia que houve uma aproximação positiva entre a Central e “alguns setores” das categorias policiais. Ele cita diretamente a Associação de Cabos e Soldados (Acasol) e a União Gaúcha de Escrivães e Inspetores de Polícia (Ugeirm/Sindicato).

Vicente destaca que o apoio dado ao movimento fez com que as bases desses sindicatos passassem a compreender e respeitar a CUT. Ele admite, entretanto, que houve dificuldades no relacionamento com o Servipol e a Abamf.

“O método de negociação e de deliberação dessas entidades foi questionado abertamente por nós, porque é antidemocrático”, explica.

Para o sindicalista, a questão pode ser resumida assim: as categorias que têm uma compreensão ideológica dos problemas sociais estão mais próximas da CUT. Por outro lado, às entidades que têm preocupações exclusivamente corporativistas não interessa dialogar com a Central.

Entre os dirigentes cutistas as opiniões também se dividem. “Não temos uma posição definida sobre isso”, confirma Vicente.

Ele concorda que o futuro das relações do movimento sindical com os servidores das polícias passa pela superação de antigas divergências e pelo entendimento da contradição inerente a essas atividades.

“Temos dito a eles que nosso inimigo comum é o governo Britto, que paga mal e manda eles nos reprimirem”, revela o presidente da CUT.

IMAGEM – Não bastassem os baixos salários, a falta de viaturas e armamentos e o risco de vida permanente, os policiais brasileiros enfrentam ainda a desconfiança da população.

Uma pesquisa realizada pelo Datafolha, em julho, mostrou que a maioria dos entrevistados acha as polícias pouco eficientes e rejeita atitudes violentas e o abuso de autoridade praticados pelas corporações.

Mais da metade admite ter medo daqueles que têm a função de garantir a segurança dos cidadãos.

O dado curioso é que, ao mesmo tempo, 90% consideram justas as reivindicações por melhores salários; 60% defendem o direito de greve da categoria, mas 80% desaprovam o uso de armas durante manifestações, bem como a invasão de prédios públicos.

Cinco em cada dez entrevistados apontam um culpado para a crise: o presidente Fernando Henrique Cardoso. Para eles o governo federal deveria liberar verbas para aumentar os salários dos policiais.

O apoio da CUT e do MST às mobilizações dos policiais recebeu a aprovação de 58% das pessoas pesquisadas, mesmo 72% tendo respondido que é a luta por melhores salários que leva a categoria a protestar.

Apenas 15% enxergaram motivações políticas na ação dos policiais.

Líderes seguem exemplo dos adversários

É no mínimo intrigante a origem da maioria dos líderes das manifestações dos policiais que sacudiram o país nos últimos meses.

Em comum, eles têm o fato de se espelharem nos tradicionais adversários: sindicalistas e agricultores sem-terra, que inúmeras vezes foram obrigados a combater em serviço.

Renato Ribeiro, coordenador da Associação de Cabos e Soldados de Pernambuco “aprendeu” a fazer greve enquanto reprimia paralisações de outros trabalhadores.

“Nossa luta não é política, mas a favelização tem despertado a consciência de muita gente”, explica. “Essa greve mudou a cabeça de todos nós”, desabafa.

No Rio de Janeiro, o homem que lidera a polícia civil é um ex-araponga que, no governo Brizola (1986/1989), era encarregado de vigiar as atividades dos sindicatos.

Cláudio César Russo da Cruz é filiado ao PDT e começou a militância no Sindicato dos Policiais Civis. Expulso em 94, fundou em 95 o Núcleo de Defesa dos Policiais Civis do Rio.

O cabo José Almi Pereira Moura, um dos líderes do movimento que paralisou a PM do Mato Grosso do Sul, é vereador do PT em Campo Grande (MS).

Antes de conquistar uma vaga no legislativo municipal, com 2.975 votos, foi presidente do Grêmio da Polícia Militar durante seis anos.

Na Paraíba, um dos responsáveis pela greve de cinco dias que mobilizou 7,5 mil soldados em seis batalhões da PM é o relações públicas da Associação de Subtenentes, Sargentos e Tenentes (Aspom).

O sargento Denis Soares dos Santos é filiado ao Partido Verde (PV).

A renda mensal em torno de R$ 1 mil diferencia o cabo Júlio César Gomes da maioria de seus colegas de farda da Polícia Militar de Minas Gerais. O salário bruto é de R$ 550,00 e o restante ele ganha dando aulas de computação.

O líder do movimento – o primeiro a ser deflagrado no país – tem casa própria, apartamento financiado pela Caixa Econômica Federal e um carro ano 91.

“Sempre tive dois ou três empregos”, justifica Gomes, que também já trabalhou como camelô e segurança particular.

O presidente da Associação de Cabos e Soldados (Acasol) do Rio Grande do Sul. Adelmar Vieira da Silva, é tido como o mais combativo dos líderes da Brigada Militar gaúcha.

Adelmar ocupa a cadeira que já foi do deputado estadual José Gomes (PT). Nem por isso pode ser considerado petista. No passado, ele trabalhou como assessor do radialista e deputado Sérgio Zambiazi, do PTB.

Na sua gestão à frente da Acasol, a entidade mantém um bom relacionamento com a CUT.

Boletim de Ocorrência

Fotos – No dia 19 deste mês, três oficiais da Polícia Militar de Minas Gerais vasculharam os arquivos fotográficos do jornal O Tempo, de Belo Horizonte. Eles buscavam provas do envolvimento de soldados da corporação nas manifestações por melhores salários. Munidos de uma autorização concedida pelo juiz-auditor da 3? Auditoria da Justiça Militar, Jadir Silva, os oficiais selecionaram nove envelopes, contendo cerca de 200 fotos. O jornal pertence ao deputado federal Vitório Medioli, do PSDB, mesmo partido do governador Eduardo Azeredo.

Pimenta – Na Bahia, policiais civis atiraram pimenta malagueta nos deputados estaduais, em protesto pela aprovação do plano de cargos e salários da categoria, proposto pelo governo. O ato foi uma alusão ao deputado Tarcizo Pimenta (PTB) , relator do projeto, que não acatou nenhuma das emendas apresentadas pela oposição. Os policiais reclamam que o aumento, de 40% em média, discrimina aposentados e peritos, além de ser escalonado.

Racismo – O ex-comandante da Brigada Militar e juiz da Justiça Militar gaúcha, coronel Antonio Carlos Maciel Rodrigues, está impedido de frequentar locais públicos, de sair de Porto Alegre sem autorização da Justiça e deve prestar serviços à comunidade no período de dois anos. Ele está cumprindo sursis depois de aceitar o acordo proposto pelo Tribunal de Justiça no processo movido pelo cabo Gilmar Almeida. Em 1995, o cabo foi preso na praia de Tramandaí quando tentava impedir que o coronel estacionasse seu carro em fila dupla. Rodrigues teria chamado Almeida de “negro sujo e nojento”. Sentindo-se ofendido, o cabo processou seu superior hierárquico.

Instrumento de dominação

A história mostra que desde o Descobrimento, o modelo militar vigora nos serviços policiais brasileiros.

Primeiro, eles tiveram a função de proteger o território das invasões.

Em seguida, estiveram envolvidos em guerras, batalhas e revoluções.

E a partir de 1964 exerceram o papel de polícia política.

A maioria das polícias brasileiras surge em períodos de crise interna, defendendo os interesses das elites políticas provinciais ou estaduais.

Seguindo a tradição portuguesa, nascem militarizadas.

No Rio Grande do Sul, o Corpo Policial, primeiro nome da Brigada Militar, foi criado em 1837, durante a Revolução Farroupilha.

Com diversas denominações anteriores, a Brigada Militar participou da Guerra do Paraguai (nas batalhas de Tuiuti e Avaí), da “Guerra dos Muckers” e da Revolução Federalista de 1893, ao lado de Júlio de Castilhos.

Também lutou com Borges de Medeiros em 1923; perseguiu a Coluna Prestes até o Nordeste do país; apoiou Getúlio Vargas em 1930 e na Revolução Constitucionalista de 1932.

Em 1961, defendeu a Legalidade, mantendo-se fiel a Leonel Brizola.

Com o golpe militar de 1964, tanto as Forças Armadas quanto as polícias civil e militar assumem o papel de repressão política aos sindicatos de trabalhadores e organizações de esquerda.

O Exército passa a comandar as PMs estaduais, sob o bastão da Doutrina de Segurança Nacional.

Crescem em importância os serviços de espionagem. A tortura de presos em delegacias e quartéis é instituída como método de investigação.

Na Brigada Militar, são criadas a PM-2 e a P-2, ambas coordenadas pelo Estado Maior das Polícias Militares e subordinadas ao então Serviço Nacional de Informações (SNI).

A primeira é encarregada da espionagem externa, produzindo relatórios sobre as atividades da oposição.

A segunda, ocupa-se da “segurança interna”, vigiando de perto os passos dos integrantes da corporação.

Após a redemocratização, esperava-se que a Brigada Militar voltasse a se preocupar exclusivamente com o policiamento preventivo.

Mas a ideologia do combate ao “inimigo interno” – viga mestra da Doutrina de Segurança Nacional – continua presente. A diferença é que hoje, em vez de caçar comunistas e subversivos, a espionagem das PMs tem na mira os movimentos sociais, urbanos e rurais.

Em 1992, a Assembleia Legislativa instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os funcionamento dos serviços de informações do Estado.

Excessos e desvios das finalidades

O trabalho, conduzido pelo ex-deputado Antônio Marangon (PT), apurou excessos e desvios nas finalidades desses órgãos. Mas o relatório final da CPI terminou sendo arquivado.

Quem estava no centro dos massacres de Eldorado dos Carajás, Corumbiara e Carandiru? E nas chacinas de Vigário Geral e da Candelária? Quem foi flagrada dando sopapos em trabalhadores na escuridão da noite, em Diadema? Acertou quem respondeu Polícia Militar.

No combate ao crime comum, ou na repressão aos movimentos sociais, o uso da força é o modus operandi característico das polícias militares brasileiras. Um mau hábito que começa a ser ensinado na fase de instrução dos novos soldados. Atrás dos muros dos quartéis, os castigos têm uma função pedagógica.

Mais: a prática da violência é prevista, justificada e estabelecida em lei.

“Na caserna, as arbitrariedades contra os subordinados são legitimadas pela hierarquia e pelos regulamentos”, aponta os ex-sargento Gilmar Corrêa Nunes.

Ele sabe do que está falando. Durante 11 anos, Nunes assistiu a cenas de humilhação e sofrimento físico de seus colegas da Brigada Militar.

Formado em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Nunes se especializou em Análise Social da Violência e da Segurança Pública.

Ele é o autor da monografia A violência Política Institucionalizada, que teoriza sobre as origens, a organização e a ideologia da Brigada Militar.

Em seu trabalho, mostra que a instituição ainda conserva várias práticas do período da ditadura.

O Regulamento Disciplinar da Brigada Militar (RDBM) prevê, no artigo 17, que o superior hierárquico poderá utilizar meios violentos para obrigar um subordinado a cumprir suas ordens “nos casos de perigo, necessidade urgente, calamidade pública e manutenção da ordem e da disciplina”.

Mais adiante, assegura a impunidade dos agressores, ao estabelecer que “não haverá punição quando for reconhecida qualquer causa de justificação”.

Críticas ao regulamento

Para o sociólogo, o regulamento permite interpretações subjetivas, fazendo com que atitudes arbitrárias possam ser consideradas normais.

Além disso, tanto o Estatuto quanto o Regulamento Disciplinar da BM não garantem ao PM os mesmos direitos de um cidadão comum, alguns deles consagrados pela Constituição.

Até para casar o soldado deve pedir autorização ao comandante, do contrário poderá sofrer uma punição.

Os policiais militares também estão proibidos de promover reuniões de cunho político ou com propósito de reivindicação salarial.

Para o deputado estadual José Gomes, este artigo contraria frontalmente a Constituição, que assegura o livre direito de associação a todos os cidadãos.

No ano passado, a Assembleia Legislativa aprovou projeto do deputado adequando o Estatuto da BM à ordem constitucional. O texto foi vetado na íntegra pelo governador Antônio Britto.

Examinando o currículo do curso de formação de soldados, cabos, sargentos e oficiais da BM, o sociólogo descobriu que pouca coisa mudou desde a abertura política.

A instrução militar ainda prepara o PM para combater o inimigo. Só que, em vez do “subversivo” ou “terrorista” dos anos 60 e 70, o alvo atual é o criminoso comum infiltrado no povo.

Nunes explica que a transição para a democracia não trouxe como consequência a redução absoluta do arbítrio do Estado.

Segundo ele, “tanto no combate à criminalidade, quanto na repressão às manifestações populares, a violência policial faz parte de um política deliberada de controle social.”

O uso da violência, do abuso, não é um acidente; na verdade é uma prerrogativa de quem detém o poder.

De acordo com o sociólogo, “a ideologia do Estado é fundamentada no mito de que ele age em nome da sociedade.”

Desta maneira, continua, “a interferência do aparelho repressivo nas lutas de classes é dissimulada, porque se dá em nome do regulador neutro dos interesses da ordem.”

Tribunais militares são desnecessários

No meio da confusão gerada pela insurreição das polícias militares em todo o país, o governo federal ressuscitou a proposta de extinção dos Tribunais Militares estaduais.

Polêmico, o assunto volta à tona toda vez que surgem denúncias de abusos e violência praticados por PMs contra civis.

No dia 10 de agosto, o Jornal do Brasil publicou uma reportagem revelando que 68% dos processos envolvendo policiais militares encaminhados à Auditoria Militar do Rio de Janeiro são arquivados sem julgamento.

Na maioria dos casos, o Inquérito Policial Militar (IMP) – investigação realizada por oficiais da PM – não consegue reunir provas suficientes, não identifica o autor do crime ou conclui que o agressor agiu em legítima defesa.

Para o deputado federal Hélio Bicudo, autor de um projeto que transfere o julgamento de crimes cometidos por PMs para a Justiça Comum, o corporativismo da Justiça Militar começa na fase de investigação.

“O IPM chega ao Ministério Público (encarregado da denúncia) cheio de falhas e pronto para ser arquivado”, constata.

Há três meses, o projeto de Bicudo foi rejeitado no Congresso com os votos contrários das bancadas do PSDB e do PFL, que dão sustentação ao governo.

O deputado petista propunha mudanças também na fase de inquérito, com o deslocamento de promotores do MP para acompanhar as investigações. Pela proposta do governo, apenas o julgamento seria feito pela Justiça Comum.

O inquérito continuaria sendo de responsabilidade dos oficiais da PM.

Para Ricardo Cunha Martins, advogado do Centro de Defesa e Assistência (CDA) a maioria dos processos contra policiais envolve componentes ideológicos. Quando o policial é julgado por transgredir regras disciplinares internas, as penas costumam ser rigorosas.

Por outro lado, quando se trata de crimes cometidos contra civis, a tendência dos Tribunais Militares é de proteção aos culpados.

Essa opinião é corroborada pelas estatísticas. Entre janeiro de 1982 e junho de 1993 , a Justiça Militar do Rio Grande do Sul julgou 14 processos de homicídios dolosos em que o autor e a vítima eram membros da Brigada Militar.

Em 100% dos casos houve condenação. No mesmo período, o Tribunal examinou 63 processos de homicídio onde o policial retirou a vida de um civil. Destes, apenas 63% foram condenados.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) considera os Tribunais Militares desnecessários.

Em geral, esses foros especiais são compostos de quatro juízes-oficiais e um civil – juiz togado -, além de um promotor de justiça vinculado ao Ministério Público.

O secretário-geral da Comissão de Direitos Humanos da entidade, Lauro Schuch, diz que os juízes-oficiais não têm conhecimentos jurídicos suficientes para ir além do julgamento de questões militares típicas.

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