GERAL

O fundamento político da estabilidade

Tarso Genro / Publicado em 8 de julho de 1997

A questão da estabilidade do servidor público tem sido abordada, normalmente, a partir de uma ótica profundamente distorcida, como se esta garantia visasse principalmente a proteção do servidor. Tal abordagem deixa vulnerável o servidor público perante a sociedade, pois ela destaca a estabilidade como vantagem incompreensível para uma boa parte da população, já que na esfera da atividade privada ela inexiste para os demais trabalhadores.

Esta visão equivocada, não só desgasta politicamente a imagem do servidor, que passa a ser visto injustamente como “privilegiado”, como também deixa de lado o interesse público de natureza coletiva, que incide sobre a relação de trabalho do servidor com o Estado. Aliás, uma relação de trabalho que não visa “dar lucro” nem proporcionar a acumulação privada, mas responder a determinadas necessidades sociais.

Não resta a menor dúvida que a estabilidade do servidor público também é uma conquista dos trabalhadores. Trata-se de um patrimônio jurídico que integra o trabalhador, que presta serviços ao Estado, num patamar de cidadania superior àquele historicamente reconhecido aos trabalhadores das empresas privadas. Mas isto é apenas um aspecto – e secundário – do instituto da estabilidade do servidor, cujo fundamento político é bem outro.

Para que possamos refletir corretamente sobre a questão da estabilidade do servidor público, temos de partir de um princípio importantíssimo para a democracia moderna: o princípio da neutralidade formal do Estado. Por este princípio as instituições jurídicas do Estado democrático devem subordinar os governos, fazendo com que eles, independentemente da sua origem partidária, tendam a preservar o interesse público nos limites da Constituição.

O objetivo desta subordinação dos governantes à legalidade é obrigar a que o Estado trate todos os cidadãos, independentemente do sexo, raça, religião e condição social, segundo o princípio da igualdade perante a lei.

Este princípio, inscrito em todas as Constituições modernas, traduz um grande avanço democrático. O princípio é, sem dúvida, uma forma de legitimar o Estado, para que ele assegure um “contrato social” estável. De outra parte, ele permite também que o Estado “preserve-se” com uma postura formalmente neutra, para assegurar o domínio das classes privilegiadas, cujo poder se dá a partir do processo de produção. Mas ele traduz uma evidente conquista histórica da cidadania. Por quê? Ora, ele enseja que a dominação balize-se por determinada previsibilidade, dada pela ordem jurídica, garantindo ao cidadão direitos mínimos, conquistados a partir, inclusive, das revoluções sociais modernas. Estas conquistas, aliás, se deram marcadamente a partir das lutas da classe trabalhadora e da cidadania, no interior de sangrentos processo que ocorreram desde o século 18.

Mas atenção! O Estado, como estrutura jurídico-política abstrata, realiza a sua concretude através dos seus agentes, através das pessoas jurídicas de direito público e através das pessoas físicas: os indivíduos. Estes, são os que concretizam a presença abstrata do Estado, nas suas relações com a coletividade ou com outros indivíduos tomados isoladamente.

Desta forma, os cargos e funções que o Estado organiza na administração, são cargos e funções que, em regra, devem ser indisponíveis para o governante, pois os servidores que o exercem não servem aos governos, mas ao Estado. Eles servem a uma ordem jurídica determinada, que trata os outros cidadãos ou comunidades, não a partir do que pensa o governante, mas a partir do que diz a Constituição, para dar a cada cidadão um tratamento segundo a lei e o direito.

Se o servidor público torna-se uma pessoa física “disponível” pelo governante, ele fica sujeito a “politizar” o seu trabalho, no sentido de subordiná-lo aos interesses conjunturais do governo e não aos princípios que informam a ordem democrática, organizada pela Constituição política do Estado.

Por isso, a estabilidade do servidor público é um direito da sociedade e deve ser uma exigência da sociedade. Somente secundariamente pode ser considerada um direito funcional, pois isso seria privilegiar um direito individual – nem por isso menos respeitável – contra o interesse da sociedade. Este interesse, considerado como instauração da máxima neutralidade do Estado, exige a máxima separação da “visão pessoal” do governante, daquilo que é “universal” e é compulsório para todos os partidos, que está traduzido na Carta Constitucional.

O que se trata, na minha opinião, é de buscar desenhos institucionais, para que esta mesma sociedade, que é destinatária da estabilidade, possa controlar democraticamente o serviço público. Possa, inclusive, subordinar a estabilidade do servidor ao próprio cumprimento das obrigações que decorrem da mesma Constituição, o que configuram suas obrigações inegociáveis com a cidadania.

* Tarso Genro, 50 anos, é advogado, ex-prefeito de Porto Alegre pelo PT e possui várias obras publicadas nas áreas do Direito e Ciência Política.

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