Pegaram o cara em flagrante roubando galinhas de um galinheiro e levaram para a delegacia.
– Que vida mansa, heim, vagabundo? Roubando galinha pra ter o que comer sem precisar trabalhar. Vai pra cadeia!
– Não era pra mim não. Era pra vender.
– Pior. Venda de artigo roubado. Concorrência desleal com o comércio estabelecido. Sem-vergonha!
– Mas eu vendia mais caro.
– Mais caro?
– Espalhei o boato que as galinhas do galinheiro eram bichadas e as minhas não. E que as do galinheiro botavam ovos brancos enquanto as minhas botavam ovos marrons.
– Mas eram as mesmas galinhas, safado.
– Os ovos das minhas eu pintava.
– Que grande pilantra…
Mas já havia um certo respeito no tom do delegado.
– Ainda bem que tu vai preso. Se o dono do galinheiro te pega…
– Já me pegou. Fiz um acerto com ele. Me comprometi a não espalhar mais boato sobre as galinhas dele, e ele se comprometeu a aumentar os preços dos produtos dele para ficarem iguais aos meus. Convidamos outros donos de galinheiro a entrar no nosso esquema. Formamos um oligopólio. Ou, no caso, um ovigopólio.
– E o que você faz com o lucro do seu negócio?
– Especulo com dólar. Invisto alguma coisa no tráfico de drogas. Comprei alguns deputados. Dois ou três ministros. Consegui a exclusividade no suprimento de galinhas e ovos para os programas de alimentação do governo e superfaturo os preços.
O delegado mandou pedir um cafezinho para o preso e perguntou se a cadeira estava confortável, se ele não queria uma almofada. Depois perguntou:
– Doutor, não me leve a mal, mas com tudo isso, o senhor não está milionário?
– Trilionário. Sem contar o que eu sonego do Imposto de Renda e o que tenho depositado ilegalmente no exterior.
– E, com tudo isso, o senhor continua roubando galinhas?
– Às vezes. Sabe como é.
– Não sei não, excelência. Me explique.
– É que, em todas essas minhas atividades, eu sinto falta de uma coisa. Do risco, entende? Daquela sensação de perigo, de estar fazendo uma coisa proibida, da iminência do castigo. Só roubando galinhas eu me sinto realmente um ladrão, e isso é excitante. Como agora. Fui pego, finalmente. Vou para a cadeia. É uma experiência nova.
– O que é isso, excelência? O senhor não vai ser preso não.
– Mas fui pego em flagrante pulando a cerca do galinheiro!
– Sim. Mas primário, e com esses antecedentes…
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A Barata
Veio o maître, chamado pelo garçom, e perguntou:
– Algum problema, cavalheiro?
– Problema, não. Barata.
– Pois não?
– Olhe.
O maître olhou e viu a barata no meio da salada.
– Sim…
– “Sim” diz você. Eu digo não. Pedi uma salada niçoise que, até onde eu sei, não leva barata.
– Por favor, fique calmo.
– Eu estou calmo.
– Vamos trocar por outra salada.
– Eu não quero outra salada. Quero uma satisfação.
– Foi um acidente.
– “Acidente”diz você. Eu digo: não sei não. Acidente seria se uma barata perdida, separada da sua turma, entrasse na cozinha por engano e pousasse na minha salada. Mas não foi isso que aconteceu. Para começar, esta barata está morta. Não duvido que o tempero da salada esteja de matar, duvido que tenha sido o causador da morte da barata. Obviamente, a barata já estava morta antes de cair na salada. Não há sinais de violência em seu corpo, logo ela deve ter sido vítima de agentes químicos, usados numa matança generalizada de baratas e outros bichos dentro da sua cozinha. É impossível precisar quando isso se deu. Só uma autópsia da barata revelaria a hora exata da morte. A dedetização da cozinha pode estar ainda afetando os alimentos, não só adornando-os com insetos mortos como temperando-os com veneno indivisível. Se isso for verdade, quero uma satisfação. Sou um cidadão. Conheço meus direitos. Isso é uma democracia.
– Vou chamar o gerente.|
Veio o gerente, chamado pelo maître, e disse que sim, a cozinha tinha sido dedetizada, mas um mês antes. Fora fechada para a operação. Não havia perigo de intoxicação dos alimentos, nem indício de que a barata na salada fosse resultado de uma dedetização recente.
– Então – sugeriu o cliente – ela demorou a morrer. Cambaleou, agonizante, pela cozinha durante um mês, até enxergar minha salada niçoise e escolher esta alface como sua mortalha. Eu vou botar a boca no mundo! Onde é que estamos?!
O gerente telefonou para o dono do restaurante que dali a pouco entrou pela porta pedindo desculpas e considerações. A dedetização da cozinha fora ordenada pela Secretaria Municipal de Saúde. Para confirmar isto, o dono do restaurante tinha trazido o secretário municipal de saúde, que disse ter agido seguindo diretrizes do Ministério da Saúde. O ministro da Saúde foi convocado e, na chegada ao restaurante, se responsabilizou por tudo. Menos pela barata. A barata na salada não podia, cronologicamente, ser uma decorrência da dedetização. A não ser que alguém da cozinha a tivesse guardado, conservando no gelo e esperado a ocasião para…
O cliente interrompeu a especulação do ministro com um tapa na mesa e perguntou quem era seu superior. O ministro suspirou e tirou seu telefone celular do bolso para convocar o presidente da República, que chegou em menos de meia hora, vestido a rigor. Deixara uma recepção no palácio para atender ao chamado.
– O que foi? – perguntou o presidente.
– Olhe.
– O presidente olhou e viu a barata. Disse:
– E daí?
– A responsabilidade é sua.
O presidente concordou com a cabeça. Perguntou o que o outro queria.
– Uma satisfação.
O presidente pediu desculpas. O homem não aceitou. O presidente ofereceu uma indenização. O homem não quis. Chamaram o ministro do Exército.
O general chegou e perguntou, como o maître:
– Algum problema, cavalheiro?
O homem apontou para a salada. O general olhou, disse “Oba, uma azeitona!”, pegou a barata e engoliu. Depois o homem foi preso e processado por fazer acusações falsas ao restaurante. Era uma democracia até certo ponto.
O escritor e cronista Luis Fernando Verissimo está em viagem à Europa. As crônicas desta edição foram extraídas, com a autorização do autor, de Novas Comédias da Vida Privada, L&PM Editores, 1996.