Eram 8 horas e 17 minutos de uma terça-feira úmida. A redação estava envolvida com a reportagem sobre dependência química, falara com especialistas, andara pela periferia da cidade verificando o trabalho de redução de danos e a vida dos dependentes, suas famílias, suas comunidades. Levantou-se números estatísticos surpreendentes, inclusive da incidência do uso de drogas entre jovens e crianças. Mas nada disso foi mais chocante do que a imagem de uma moça, aparentando uns 20 e poucos anos. Sentada na porta de uma casa abandonada na rua Ernesto Alves, bairro Floresta de Porto Alegre, meticulosamente selecionava a veia mais saliente para introduzir a agulha. Coca, heroína? Não soube dizer o que era, aplastada por uma letargia deprimente. Pediu um cigarro, espantou-se com o nosso espanto e ofereceu um meio sorriso enigmático.
As estatísticas são apenas grupamentos convencionais de números. A vida que escorre pela calçada suja é uma tragédia silenciosa, sem platéia. Horror, miséria, morte de quem ou está condenado pelo vírus da Aids ou pela violência dos traficantes. Talvez aconteça assim pela indiferença da sociedade, pelo rebaixamento da cidadania, pela omissão do Estado. Não importa, o fato é que o consumo de drogas no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, alcança quase 200 milhões de pessoas, uma população de tamanho semelhante a do Brasil, onde o uso de maconha cresceu 77% em seis anos, período em que aumentou o consumo de cocaína em 400%. Vendidos livremente, inclusive para menores de idade, o fumo e o álcool, são os maiores e constantes protagonistas da melhor mídia publicitária feita no país. A maioria da população não os considera droga, mas provocam dependência e resultam num custo social imponderável – associado às doenças crônicas, aos acidentes de trabalho e no trânsito.
Entretanto, somente há pouco tempo o uso de drogas e a dependência química passaram a ser considerados doença. Até então eram classificados como desvio de conduta e a ação básica do poder público era a repressão. Agora surge a expectativa de um enfoque menos ortodoxo e mais eficiente, que combina repressão ao tráfico e tratamento do dependente através de programas multidisciplinares, chamados de redução de danos. Segundo especialistas na área, esta administração do problema visa evitar a proliferação de doenças e reduzir os danos sociais e está informada pela epidemia do vírus HIV.
Porém, tais intervenções, como é comum no Brasil, esbarram na precariedade da cidadania e das condições sociais. Assim como outras contravenções, o tráfico e a distribuição de drogas movimenta milhões de dólares e desgraçadamente é capaz de gerar emprego, tornando-se alternativa de vida para milhares de excluídos. Barbitúricos, heroína, craque, cocaína, pistolas, agulhas, sangue, morte, fazem parte do cotidiano.
Setores mais avançados procuram encaminhar soluções, mas também encontram obstáculos no aparato legal. Afinal, a distribuição de seringas e a convivência com a droga para evitar a contaminação é uma espécie de incentivo criminalizado pela legislação brasileira. A saúde pública e os especialistas lutam para mudar as leis e, quem sabe, reduzir uma tragédia silenciosa que, nem por isso, causa menos escândalo.
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Mas isso não é tudo, nosso planejamento editorial mais uma vez esbarrou na força do cotidiano. Na esteira das mobilizações nacionais, as forças de segurança do Rio Grande do Sul também desencadearam uma ação até bem pouco tempo impensável: Greve. Aqueles que sempre, e rotineiramente nos tempos da ditadura, eram chamados para desfazer piquetes, dispersar passeatas e protestos, passaram para o outro lado. É de se perguntar, o que está havendo com o Brasil? Os governantes e seus órgãos oficiais anunciam que estamos no caminho certo, que o país está ingressando no estágio da modernidade. Há problemas, é certo, mas tudo acabará bem, dizem. Parece que uma parte da sociedade tem alucinações. Num lado baixos salários, desemprego, falta de moradia, desorganização do Estado; de outro, estabilidade da moeda, pujança, grandes projetos industriais. Alguém está drogado.