Outro dia um engenheiro comentava, na Folha de São Paulo, o equívoco dos colonizadores portugueses em construir casas de alvenaria ao chegarem ao Brasil. Foi uma opção estranha em um lugar onde a madeira é abundante. Somente os imigrantes da região Sul, no fim do século passado, fizeram como os ingleses na ocupação do território norte-americano: aproveitaram a madeira na construção da moradia. Mas os alemães, italianos, poloneses e os outros imigrantes não conseguiram reparar todo o mal. De equívoco em equívoco estamos chegando ao final de mais um século, sem casa para morar. Evidente que o déficit habitacional do país não decorre da escolha da matéria-prima e da técnica do sistema construtivo.
A tragédia banalizada no horário nobre da televisão brasileira, com a morte de sem-tetos, de despejos indevidos, de mulheres e crianças implorando ao oficial de justiça para que não derrube a casa, é muito mais conseqüência da irresponsabilidade do poder público. A condição de cidadania está rebaixada a patamares desesperadores: tem muita gente sem terra para plantar e viver, tem muita gente doente sem assistência à saúde, tem muita gente analfabeta sem escola, tem muita gente sem emprego. Omisso no seu papel de promover direitos, o Estado age com rigor e insensibilidade diante da iniciativa da população. De maneira perversa, ignora que a concepção de Estado e o modelo econômico adotados só podem provocar conflitos como o que se viu no conjunto habitacional da Cohab de São Paulo.
O sociólogo Fernando Henrique Cardoso, especialista na formação social do Brasil, costuma indignar-se com estas situações. Freqüentemente apela para que a sociedade brasileira empreenda medidas sérias e urgentes para superar estes indicadores de atraso que só denigrem a imagem do país no exterior. Tem-se a impressão de que se ele fosse o presidente da República coisas como estas não estariam acontecendo mais. Afinal, não é, digamos, civilizado, que um órgão de segurança pública, cuja função, entre outras, é garantir a integridade física do cidadão, como é o caso da Polícia Militar paulista, atire e mate cidadãos que lutam por um direito elementar mínimo.
Estes fatos ofendem a sensibilidade de intelectuais como FHC, da mesma forma que a miopia de seu parceiro de PSDB, governador Mário Covas, de São Paulo, agride qualquer visão sensata da realidade. Longe de qualquer interpretação subjetiva, as imagens do Jornal Nacional e do vídeo apresentado ao go-vernador Covas exibiam uma evidência. Foi a PM que atirou e matou. Alguém pode imaginar que os sem-teto atirariam em si mesmos? Mas Covas ficou perturbado, disse que mandaria investigar a origem dos disparos. Deve ter sido um mal aluno de Física, não estudou vetores, velocidade, aceleração…
Os ânimos poderiam estar exacerbados, o movimento dos sem-teto pode ter sido inábil em estabelecer uma negociação com o interlocutor armado. Tudo isso deve ser considerado, mas é esdrúxulo que não se veja o que aconteceu, como se o exagero e a violência, principalmente nestes casos, não fossem marca registrada das polícias militares. Ao agir assim, a exemplo de outros governantes, Mário Covas reconhece que a polícia está aí para isso mesmo, para proteger interesses particularistas, ao contrário de sua função constitucionalmente estabelecida. Por isso, renunciou publicamente à exigência de que é obrigação da força policial manter o equilíbrio em todas as situações limite.
Se a conduta do Estado brasileiro, em todas as suas esferas, não se modificar com urgência, tais conflitos vão recrudescer ainda mais. A exemplo do Movimento Sem-Terra, os Sem-teto estão se organizando para enfrentar qualquer tipo de situação e buscar, muitas vezes com o preço da própria vida, um direito sagrado. Sem o apoio institucional da igreja, estes cidadãos não vão apenas reivindicar políticas habicionais públicas. Vão avançar sobre o produto da especulação imobiliária do jeito que a vida lhes permitir.