Buchecha ganha uns trocados abrindo as portas dos táxis da Rodoviária de Porto Alegre. Das “freguesas”, recebe roupas e comida. Dorme no mocó ali perto, mesmo. Não vai à escola, mal sabe ler e escrever. Esse menino que diz que tem 16 anos aparenta menos, como outras crianças e adolescentes que perambulam pelas ruas. Mudar o nome e disfarçar a idade faz parte dos truques para sobreviver. O olhar de Buchecha não tem dureza. Ele transmite uma infinita dor de tom avermelhado, amortecido pelo uso da droga – loló e, mais recentemente, as três pedras de crack fumadas por dia. “Não tenho sonho…nenhum”, resume.
Há um batalhão de jovens sem sonhos vivendo um pesadelo nas ruas do Brasil. Uma geração que, apesar de todos os avanços conquistados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e de programas e projetos governamentais aparentemente bem intencionados, ainda está longe de seus direitos. Se existem a lei e os programas, por que essas crianças e adolescentes continuam nas ruas? Onde está a falha?
Não há apenas uma razão, acredita o psicanalista e psicólogo Jorge Broide, 48 anos, há 25 trabalhando com moradores de rua em São Paulo. Broide enumera algumas causas: falta de maior vontade política dos governos (por despedício de dinheiro em programas ineficientes) e a pouca ou nenhuma capacitação adequada de quem lida diretamente com essa realidade em casas de atendimento, abrigos, escolas.
“É importante capacitar desde a cozinheira, a faxineira, até o coordenador de trabalho”, ressalta Broide, que tem feito supervisão com grupos de funcionários para ajudá-los a digerir a avalanche de sentimentos gerados pela vivência repetitiva de destruição e morte com que são confrontados diariamente. Segundo Broide, normalmente estas pessoas não têm com quem conversar sobre esses sentimentos e ficam tão abandonadas psiquicamente quanto as populações que atendem. Adoecem, ficam destruídas. Cabe ao Estado, a seu ver, propiciar uma espaço onde possam elaborar as perdas e ficar mais livres para seguir com sua função.
“Quem lida com crianças e adolescentes de rua tem que usar toda a sua força intelectual e afetiva para se proteger do impacto do trabalho”, orienta Broide. Se a pessoa não tem um espaço de reflexão, tende a limitar o seu contato com essa população como autodefesa. Quando Broide começou a fazer grupos de psicoterapia com os excluídos de São Paulo, tinha a ilusão de que iria tirar todos da rua. Hoje, é mais realista. “A gente trabalha na brecha da vida. A exclusão e a destruição são tão fortes, que não temos força para nos contrapor à morte. Mas o simples fato de a pessoa ter alguém com quem possa ter uma conversa verdadeira faz com que ela morra humana – porque a rua desumaniza”.
Não é impossível tirá-los das ruas, diz Broide. Mas é importante que a instituição que os abriga possa elaborar o que está depositado na rua – as perdas, o despedaçamento da vida –, senão o jovem volta para lá. Um risco muito comum é as casas de atendimento se transformarem em mocós (moradia-esconderijo) por conta de uma aparente democracia. “Quando a casa vira rua, acabou o controle. Vi inúmeras situações em que havia uma liberalidade e foi preciso chamar a polícia para contê-los – isso destrói o trabalho, eles se sentem traídos”.
É preciso diferenciar o que é a rua e o que é a casa (abrigo ou outra instituição). A casa tem leis que ajudam as crianças e os adolescentes a se constituírem: não podem entrar ali com arma, nem droga, nem produto de roubo. A rua tem como regras a violência, a morte, a Aids. O psicanalista admite que é quase impossível, por exemplo, alguém sobreviver na rua sem se drogar, porque a realidade é tão brutal, que é preciso algum anestésico. Dentro das instituições de acolhimento, no entanto, se pode falar sobre a droga, mas não usá-la.
“Eu me acostumei com a rua, porque ali o cara é mais livre, mais solto. De instituição eu fujo”, diz Buchecha.
A relação entre os jovens e a rua, e a incompetência das autoridades e técnicos para aceitar e lidar com esse vínculo é outro motivo por que as crianças e os adolescentes preferem ficar fora de qualquer instituição. Broide explica que algumas crianças, adolescentes, e mesmo os adultos começam a se tornar prisioneiros da rua – a ligação fica tão forte, que a tendência é sempre voltar. Uma criança em desenvolvimento geralmente faz vínculos primeiro com a mãe, depois com o pai, a família, e, mais tarde, com a escola e o trabalho. Quem vai para a rua já rompeu estes laços e os refaz num único espaço e tempo: é da rua que vai tirar o alimento, a vida afetiva, os amigos. Também há uma dependência, só que com a morte, porque não há limites para a violência e a doença, e nem um pai que dite uma lei.