Quando Otto Maria Carpeaux (1900-1978) chegou ao Brasil, em 1939, não passávamos (será que já passamos?) de um desses países exóticos que se vê no mapa-múndi, onde supõe-se que possa existir de tudo, menos qualquer coisa parecida com literatura. Pois reza a lenda que, naquele ano, fugindo da insânia nazista, o austríaco, em plena imensidão do Oceano Atlântico, veio a saber que havia tomado o navio para o Brasil, e não, como era sua intenção, para a Argentina e sua capital europeizada, Buenos Aires.
Como o destino era mesmo o Rio de Janeiro, Carpeaux tratou de começar a pensar no que poderia existir de literatura em um país como o nosso. Não se surpreendeu, portanto, em ver que havia existido um Gonçalves Dias. Tampouco um José de Alencar – natural, segundo as modas literárias do século passado. Um Castro Alves? Era óbvio um abolicionista entre tantos escravos trazidos da África. Agora, Machado de Assis? Este sim era algo muito distante do que quer que fosse possível fazer nesta costa da América do Sul.
Fotos: divulgação
Não se sabe se por um acidente desses, como Machado de Assis, mas o fato é que, para nossa sorte, Carpeuax não só ficou como acabou se apaixonando pelo Brasil. A ponto de se dedicar com ardor à língua complicada falada pelo povo daqui. A ponto de trazer para o Brasil nomes da literatura européia ainda não conhecidos nessas terras – Franz Kafka é um deles. A ponto de se dedicar a estudar a literatura e a vida brasileiras – Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira (1949-1963) e O Brasil no Espelho do Mundo (1965). A ponto de escrever no Brasil a – nas palavras de Mauro Gama – maior e melhor História da Literatura de todas as já tentadas em qualquer língua em todo o mundo. E a escreveu em português.
22 anos depois da morte de Carpeaux, suas obras completas estão sendo agora relançadas pela editora Topbooks-Universidade Editora, do Rio de Janeiro. O primeiro volume – Ensaios Reunidos 1942-1978, De A Cinza do Purgatório até Livros na Mesa, com 928 páginas – já está nas livrarias desde o ano passado. Este ano vêm os Ensaios Reunidos II e III. Seguindo o roteiro de publicações organizado pelo filósofo paulista Olavo de Carvalho, estão por sair Obras Históricas Breves, Escritos Políticos Brasileiros, Escritos Políticos Europeus e História da Literatura Ocidental, em quatro volumes.
História da Literatura Ocidental, com mais de duas mil páginas, foi escrita em menos de dois anos, e estuda a vida e obra de aproximadamente 8 mil autores. E não é só literatura. De cultura enciclopédica, Carpeaux ensina, enquanto analisa a arte, política, economia e cultura em geral. Não se trata de uma simples reunião de nomes e livros, a história de suas vidas e de suas épocas. Carpeaux não se furta de emitir opiniões. Opiniões fortes, arrasadoras. E um conhecimento da “aristocrática” alma da arte como poucos têm: “A obra de Pater (escritor inglês Walter Pater – 1839-1894) é um grande protesto contra a estética moralizante de Ruskin, mas também contra a tentativa de Arnold de educar a nação. Pater não acredita nisso: a arte não é nem nunca será de todos nem dos muitos. Só poucos têm direito de vivê-la plenamente, embora sob a condição de renunciar a outros prazeres da vida”, escreveu na parte IX da famosa obra.
Antes de chegar ao Brasil, Carpeaux já havia publicado cinco livros na Europa, onde estudou Matemática, Física, Biologia e Química, na Universidade de Viena. Mas é um humanista. Doutorou-se em Letras e Filosofia, ainda na Áustria. Dedicado também à música, publicou, em 1958, Uma Nova História da Música. Foi cidadão brasileiro, e lutou no Brasil contra a ditadura militar, mais do que muitos intelectuais nascidos no país. É nosso “herói civilizador”, nas palavras de Roberto Shwartz, uma “enciclopédia viva”, segundo Franklin de Oliveira, que também destacava: “quando chegou ao Brasil, e se fez brasileiro de coração, alma e pensamento, a sua doação à nossa cultura foi precisamente esta: a do humanismo. Enriqueceu o nosso saber, aproximando-nos ainda mais da única linha com a qual a cultura brasileira deve correr paralela, se quiser ser uma das sustentações do Ocidente: a européia”.
Álvaro Lins o via como alguém que tinha “um temperamento de inconformista, de panfletário, de debatedor”. Alfredo Bosi diz o seguinte: “Carpeaux atravessou a crítica positivista, a idealista, a psicanalítica, o new criticism, a estilística espanhola, o formalismo, o estruturalismo, a volta à crítica ideológica… Mas, educado junto aos culturalistas alemães e italianos do começo do século, ele sabia que nada se entende fora da História. O ensaísmo de Carpeaux é um diálogo com a historicidade profunda de todas as obras”.
Aqui, no paraíso tropical, ele tentou usar de sinceridade, em que no íntimo demonstrava: em termos estéticos, não podemos fazer muita coisa longe da Europa, da tradição ocidental. Havíamos há pouco rompido com a essa mesma Europa, ou melhor, um grupo de milionários paulistanos (Mário de Andrade, Oswald de Andrade e outros) o havia feito ao criar o Modernismo brasileiro. Voltar a olhar mais para o Velho Continente do que para os Estados Unidos ficava muito difícil, depois daquilo. Carpeaux foi vencido, como tantos que hoje observam a marcha triunfante e vã da vida norte-americana sobre as cabeças arqueadas dos brasileiros, as colunas cervicais curvas ao seu peso vazio de significado. Nosso herói civilizador foi soterrado por Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, expressão que por si só já mostra as diferenças do caminho tomado por aquela outra literatura, a que louvamos até hoje como única possível de ser brasileira.