OPINIÃO

A imprensa brasileira e a democracia: crônica de um liberalismo tupiniquim

Eduardo Capellari* / Publicado em 16 de abril de 2000

Tocqueville observa a nascente democracia norte-americana e a forma como seus cidadãos organizam a imprensa tecendo os seguintes comentários

Imagem: Théodore Chassériau/Wikimedia Commons/Domínio Público

Imagem: Théodore Chassériau/Wikimedia Commons/Domínio Público

Dois fatos ocorridos no final de 1999, de proporções diversas, chamaram a atenção do cidadão brasileiro atento, cujas repercussões ainda estão por merecer uma reflexão mais séria e detida – acompanhada, por certo, de ações que busquem neutralizar seus efeitos perversos:

(a) o jornalista e ex-diretor da revista Veja, Mário Sérgio Conti, publica o livro “Notícias do Planalto -A imprensa e Fernando Collor”, por meio do qual pretende explicar a relação dos jornalistas, re-pórteres e proprietários de meios de comunicação com a ascensão do ex-presidente da República;

(b) o jornalista Carlos Alberto de Souza tem o título do seu livro, “O fundo do espelho é outro – quem liga a RBS liga a Globo”, fruto de dissertação de mestrado na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), censurado pela Editora da Universidade do Vale do Itajaí sob pressão da Rede Brasil Sul, sendo publicado posteriormente como “O fundo do espelho é outro -quem liga a …”, onde explica a inserção da RBS em Santa Catarina como expressão dos interesses da Rede Globo.

Estes dois acontecimentos editoriais, seguidos das intenções dos seus autores – o primeiro motivado em interpretar a história política recente do país de forma a abrandar a participação da Rede Globo e da Revista Veja na eleição de Fernando Collor, propósito em que foram acompanhados pelos mais importantes órgãos da imprensa nacional.

O segundo impulsionado pelo interesse em compreender o papel da RBS na região sul do Brasil – intenção da qual foi parcialmente censurado -, fazem lembrar de uma velha reflexão de um aristocrata francês – Alexis de Tocqueville – nascida de sua viagem aos Estados Unidos da América em 1835, consubstanciada no clássico “A Democracia na América”.

Tocqueville observa a nascente democracia norte-americana e a forma como seus cidadãos organizam a imprensa tecendo os seguintes comentários.

“Todo poder aumenta a ação das suas forças à medida que centraliza a sua direção; é essa uma lei geral da natureza, que o exame demonstra ao observador e que um instinto mais certo ainda sempre fez conhecer aos menores déspotas. Na França, a imprensa reúne duas espécies de centralização distintas. Quase todo seu poder está concentrado num mesmo lugar e por assim dizer nas mesmas mãos, pois os seus órgãos são muito pouco numerosos. (…) Nem uma nem outra das duas espécies de centralização de que acabo de falar existe na América. Os Estados Unidos não têm capital: as luzes como o poder acham-se disseminados em todas as partes daquela vasta região; os raios da inteligência humana em lugar de partir de um centro comum, crescem, pois, em todos os sentidos; os americanos não situaram em parte alguma a direção geral do pensamento, assim como não o fizeram com a direção dos negócios públicos.”

Podemos perceber nas palavras de Tocqueville um dos elementos que passou a caracterizar as democracias nascidas na era moderna: o desenvolvimento de uma imprensa livre como garantia de uma sociedade pluralista, princípio que foi, e continua sendo em muitos países, uma preocupação dos governos e da sociedade.

Pressuposto que fundamenta na Europa desse século uma legislação altamente restritiva à concentração de meios de comunicação nas mãos de um mesma empresa – através do impedimento de propriedade simultâneas de rádio, jornal e TV -ou à concentração de audiência nacional – com a obrigatoriedade de um percentual alto de produções regionais.

No Brasil, terra em que o liberalismo foi fruto da verve discursiva de bacharéis, funcionando como sala de estar ao patrimonialismo articulado com o poder exercido de forma autoritária, a história dos meios de comunicação foi marcada pela excessiva concentração de empresas nas mãos de poucas famílias, e continua sendo, mesmo após a modernização das redações, uma ilustração de que os interesses econômicos desta elite dirigente estão longe de representarem um projeto para o país.

É muitíssimo claro que a realidade de Tocqueville do século 19 está bastante transformada, na medida em que o final do século 20 acompanhou uma grande concentração dos meios de comunicação nos países centrais, fundamentalmente nos Estados Unidos – através de fusões que promoveram a criação de verdadeiros gigantes das comunicações -, que fazem pensar em que medida os princípios liberais de uma imprensa livre ainda persistem.

Porém, na grande maioria dessas nações há uma sociedade civil complexa e pluralista que não alcança similar no Brasil, onde percebemos experiências diversas como os jornais partidários da França e Itália e os canais públicos de televisão da Alemanha e Inglaterra.

No Brasil, em que pese o crescimento do número de jornais regionais, rádios comunitárias, órgãos de comunicação de sindicatos e ONG’s, que têm atuado muitas vezes como guerrilheiros diante do exército organizado dos grandes órgãos, precisamos urgentemente pensar e construir meios de comunicação que possam ser opções de massa alternativos à ditadura da informação das grandes famílias.

A sociedade brasileira nesse início de século 21 pode ser muito mais complexa, rica e interessante do que esta caricatura pintada cotidianamente por quem não gostaria de nos ver e ouvir.

*Eduardo Capellari é professor de Ciência Política na UFSC e mestrado em Direito

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