OPINIÃO

Ingerência no samba

Antônio Paim Falceta / Publicado em 16 de março de 2000

“Tudo isso está intimamente ligado a um dos mitos mais caros da nossa civilização, o mito do ‘progresso’, balela inventada por essa classe social que sempre confundiu avanço da Humanidade com a Prosperidade dos (seus) negócios.”
P. LEMINSKI

“…às cegas, num mundo louco, no meio de estranhos.”
BECKETT

Irrita-me profundamente a pretensiosa inserção da Administração no âmbito (e chega de ao nível!) do gerenciamento escolar, assumindo o papel historicamente duvidoso de tutora da Educação. Muitos são os fatores que me levam a essa inquietação preocupada, como a visão marqueteira com que os projetos de ‘qualidade’ tratam do componente humano (que, aliás, não é comprado em lojas de armarinho!), como o projeto de dar a um profissional flagrantemente assoberbado funções, e, cada vez mais, que não estão diretamente (talvez nem indiretamente) relacionadas ao seu trabalho e à sua capacitação profissional (ver ‘desvio de função’); como essa utilização do ensino e da sua macroestrutura como balão de ensaio e, o que é pior, como expansão de mercado dos $edentos profissionais da área gerencial. Irritame, ainda mais, a incompetência performática dos seus propaladores, sua deficiente e evidente limitação lingüística, personagens que grassam por aí repercutindo “práticas” neurolingüísticas, técnicas baratas de vendas como se nós, profissionais do ensino, fôssemos a mais pueril representação da humanidade, desqualificada e “cega”, à mercê e a serviço do engenho de gestores, estes sim, habilidosos nas estratégias de produção mediada pelo lucro (sempre em desfavor do outro, que imaginam nós); como acho a terminologia empregada um glossário de asneiras, siglas de efeito, poesia concreta anacrônica em língua inglesa sequer corretamente pronunciada (5Ws etc.), dado o tamanho da reproduparvisse desta feira de enrolação conceitual para ninguém entender e para criar o universo verbal do clube (fechado) dos iniciados. Nesse aspecto, não são burros nem ingênuos nem devem ser subestimados – pois vicejam e continuam germinando à nossa volta.

Em suma, para não continuar sozinho a interminável e repulsiva lista de apontamentos (e mais não faltam!) e sem sequer levantar a pior das questões, e que subjaz a todas, a da estratégia política (sim, a política – neo, pós, vice, supra liberal – tornou-se um perigoso campo de batalha, na qual a proporção dos riscos é a dimensão dos autobenefícios – porque nada é gratuito), limito-me a sustentar que é anticultural, inumano, humilhante nós, profissionais, sermos tratados como e equiparados a objetos de comportamento programável, sem nuances, sem fortuidades, sem o inusitado, sem vontades e desejos próprios, sem contradições e sentimentos controvertidos. Nossa preterida realidade interior não vem ao caso; o que importa é a mostra, o gráfico, o percentual, o perfil, a tabela, as figuras ‘em vermelho’, índices que lembram aquelas pesquisas de opinião em que nos metíamos nos tempos de estudantes, bicos em que inquiríamos as classes sociais sobre a aceitação de empreendimentos concorrentes no mercado (de calçados, cigarros, bebidas, absorventes …).

Que não fique a dúvida sobre o uso da pesquisa como instrumento de trabalho, enfim, como meio para se atingir um fim. Duvida-se, no entanto, desse segmento que já criou a Reengenharia, o Iso 9000, a Junior Achievement, o Lair Ribeiro e que, a cada novo pequeno deslocamento do comportamento social, engendra novas técnicas e novas fórmulas para tomar para si o domínio dos processos – e beneficiar-se com isso. A escola particular, nesse momento, como ramo do comércio que é, vem lançando mão de tais influências (vedando-se ao fato de que, dentro de si mesmas, há potencial insuperavelmente maior de transformação e de gerenciamento. A dizer, pode encontrar os buscados diferenciais nos seus próprios recursos humanos – eventualmente valorizados – e nas sua própria proposta político pedagógica. Sem contar o fato de ter um grupo proporcionalmente superior e mais qualificado que o pretenso questionado).

A contrapelo, tamanho o grau da incoerência (ou tamanha a artimanha da gerência), a nossa categoria batalha, hoje, por um quesito reclamado por professores que já deixaram o pó do giz há muito – a hora-atividade. Não há, enfim, como calarnos, porque não nos falta lucidez crítica – o plano de aula do amanhã está em nossas pastas e avaliar, afinal, para nós, não é, absolutamente, tarefa estranha.

Qualificadores, vão procurar a sua turma! (Sugestão de leitura complementar: conto Colar de Diamantes, de Guy de Maupassant.)

* Antônio Paim Falceta é professor, delegado sindical dp Sinpro/RS

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